segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Racionamento durante a II Guerra Mundial

Pequena nota

Ainda que um pouco mais novo, lembro-me perfeitamente deste racionamento durante a II Guerra Mundial, não em Alcoutim mas na terra da minha naturalidade.
Era um problema para as famílias modestas já que quem tinha dinheiro recorria à “candonga” onde obtinha o que lhe fazia falta.
O café bebia-se chupando um rebuçado e havia grande falta de azeite. Ainda possuo uma imagem visual das senhas que eram recortadas de umas listas.
Lembro-me perfeitamente do dia em que acabou a guerra e dos festejos efusivos de meus pais a que eu como criança me associei.

Tenho contudo um pequeno facto a revelar em relação a Alcoutim! É que em minha casa gastou-se uma grande lata com açúcar-pilé originário dessa época, e com cerca de 25 anos! Quanto ao petróleo, já não alimentava a combustão!

JV






Escreve

Gaspar Santos




Acabara a Guerra Civil. Na Espanha a produção e a economia estavam destruídas.

Começou a II Guerra Mundial. Dos países europeus só não intervinham a Espanha, Portugal, Suécia e Suíça. Os países da Europa fabricavam quase só armamento e tinham os homens válidos ocupados na guerra. Não produziam bens suficientes, sobretudo bens alimentares. Importavam muito de países como o nosso.

Portugal, perante a tradicional escassez de alimentos agora agravada, recorreu a dada altura ao racionamento, para disciplinar a distribuição e o consumo e evitar fenómenos de açambarcamento e de mercado negro. Estavam racionadas as mercearias, o azeite, o sabão, o pão e as farinhas. Mas, para além do racionamento, a complicar a vida às pessoas, ainda tínhamos escassez daquilo que não estava racionado, somado à falta de dinheiro para comprar.

Foram tempos muito difíceis no concelho de Alcoutim. Os produtores de cereais e de gado, na maior parte em deficientes explorações familiares, os empregados nas repartições do Estado e da Câmara Municipal, um ou outro artesão era quem tinha algum dinheiro para comprar. Um grande número de chefes de família rurais, grande parte do ano sem ocupação, vivendo de pequenos trabalhos esporádicos indiferenciados ou do amanho de pequena terra era quem mais dificuldades tinha para alimentar os filhos.

O racionamento consistia na atribuição a cada família do direito a adquirir no comércio, mediante uma senha, certa quantidade de mercadoria proporcional ao número de pessoas do agregado familiar. Essas quantidades eram o que as autoridades consideravam necessário para sobreviver. Para o controlo desta complicada burocracia foi criada a Intendência Geral dos Abastecimentos.

Nas outras freguesias não tive oportunidade de observar como obtinham as senhas do racionamento. Mas na freguesia de Alcoutim as pessoas chegavam a pernoitar na rua, às vezes em noites geladas enroladas num cobertor, tomando lugar na fila, à espera da abertura da Intendência para receberem a sua senha. Senha que não poucas vezes era de 4 ou 5 quilogramas de farinha de milho para uma família.

Guardo lembrança penosa do racionamento que refiro. Em 1945 quando já saíramos da escola, fui buscar para abastecimento da nossa casa a senha do racionamento do pão a levantar numa das padarias (Catarina Gonçalves no ângulo da Rua Prof. Trindade e Lima, ou na Emília Canelas no largo do Castelo). Pedi a senha na Intendência ao José Pedro Soeiro. Mas o outro empregado, que até havia poucos dias fora meu condiscípulo na escola disse para o chefe: “esse já levantou hoje a senha”. Ainda protestei por não ser verdade, mas a decisão estava tomada. Fui triste para casa. Minha Mãe ainda foi falar com o José Pedro mas não o conseguiu convencer. E mais triste fiquei quando vi minha Mãe chorar emocionada como se fossemos passar fome de forma continuada daí para diante.

Dada a escassez de géneros, as capitações por cada habitante eram pequenas, passando mal quem não tivesse maneira de obter mais alguns artigos daqueles que não estavam sujeitos ao racionamento.

[Recanto da Vila de Alcoutim. Foto JV, 2010]

Em Alcoutim valeram nessa ocasião o engenho das pessoas na confecção de outros comeres. As papas de milho ou de trigo com torresmos ou com mariscos foram uma alternativa. Outra alternativa foi as batatas-doces cozidas, e as peles de atum, cuja venda era livre, sendo o atum todo canalizado para a guerra. Houve também donas de casa que acrescentaram batatas-doces cozidas à massa do pão de trigo. Também era alternativa acrescentar alguma, pouca, farinha de milho, à farinha de trigo para fazer o pão.

Porém nunca foi alternativa fazer pão de milho, cuja farinha também estava racionada, provavelmente por falta de conhecimento a sua panificação não saia bem.
Observarão os leitores, neste ponto: papas de milho com marisco tão caros! É verdade, nesse tempo esses mariscos ainda não tinham valor comercial. Havia antigos pescadores de Monte Gordo ou de Castro Marim que por velhice já não podiam trabalhar e, sem reforma, muitas vezes recorriam à mendicidade. Traziam às costas um saco com conquilhas, berbigão ou amêijoas e davam uma medida desses bivalves a quem lhe dava vinte centavos.

[Rua Dr. João Dias. Óleo de JV]

E a batata-doce? Alcoutim não cultivava batata-doce nem tinha a tradição de vender batatas-doces na rua. Mas nessa época o Senhor João Victor recorreu a essa prática. Mandou fazer uma panela cilíndrica de folha-de-flandres com cerca de 90 cm de altura por 60 de diâmetro com uma tampa cónica, onde cozia as batatas inteiras com casca. A cozedura efectuava-se a vapor pois a panela só tinha cerca de 4 cm de água no fundo, por baixo de um falso fundo perfurado. Mantinha assim melhor todos os nutrientes particularmente o açúcar.

E as papas de trigo? Havia famílias mais carenciadas que, mesmo não colhendo trigo, conseguiam apanhar nos caminhos as espigas de trigo que caiam do dorso dos animais que as transportavam. Este trigo depois de separado das espigas era moído grosseiramente em mós manuais. E as papas (a que chamavam frangolho) eram feitas com essa farinha integral.

Além do peixe do rio ou do mar, havia mais artigos que não estavam racionados: carne de borrego, ou de cabrito, leite de cabra, queijos caseiros e vinho. Estes consumos estavam limitados naturalmente pelo poder de compra das famílias.

Havia pelo menos quatro talhos e associado a cada um deles havia um rebanho de ovelhas a aguardar o abate. Mesmo com poucas pastagens, estas ovelhas comiam ervas nos baldios e nos caminhos. Também à Vila acorriam muitas pessoas dos montes próximos a vender de porta em porta queijos frescos, leite e almece (requeijão) e ovos.

Vendas de vinho a copo, a vulgar taberna, havia nove, das quais só na Rua do Município se situavam três. Neste tempo existiam as tabernas que vendiam vinho em garrafões e garrafas e a copo. Ao contrário do que se passa em muitas regiões vinhateiras, cujas tabernas eram escassas por ser muito disseminada a produção de vinho e, assim, haver poucos consumidores a beber fora de suas casas.

Também o sabão estava racionado. Mas algumas donas de casa faziam-no a partir de restos de azeite frito, borras de azeite, toucinho e soda cáustica que se adquiria na farmácia.

As senhas para o racionamento começaram por ser entregues na Rua do Município, no andar térreo dos Paços do Concelho, passando mais tarde para a Rua Dr. João Dias em casa hoje pertencente à família Soeiro.

[Actual Rua Dr. João Dias. Foto JV, 2010]

O peixe negociava-se ao ar livre na Rua do Município encostado à parede da Capela de Santo António. Era também aí que se vendia a batata doce cozida.

Hoje estamos outra vez numa época de crise. É verdade que de natureza diferente da que aqui se descreve. Alguns jornais profetizam que os bens alimentares serão para o ano mais caros; e que muitos não terão dinheiro para adquiri-los. Estes jornais encaram o futuro com demasiado pessimismo.

Esperamos que não seja assim. Pois, outros mais optimistas, lembram que os portugueses não se organizam em tempos fáceis, mas são capazes, como nenhum outro povo, de superar as dificuldades quando elas são grandes.

De qualquer modo, aqui ficam algumas achegas, como exemplo do que foram as carências desses tempos, e de como os alcoutenejos as souberam ultrapassar, na convicção de que na crise actual também irão de certeza ultrapassar as dificuldades que surgirem.