segunda-feira, 4 de abril de 2011

Coisas Alcoutenejas - A casa da roda

(PUBLICADO NO JORNAL DO ALGARVE DE 30 DE DEZEMBRO DE 1993 – MAGAZINE)

No nosso trabalho, Alcoutim, Capital do Nordeste Algarvio… fizemos uma leve referência a este assunto.

Voltar a abordá-lo agora, significa que possuímos mais elementos. Além dos de ordem geral obtivemos os de carácter local e são esses efectivamente os que mais nos interessam.

Expostos para os mais literatos, enjeitados para o povo, eram as designações dadas àqueles que os progenitores abandonavam, neles se incluindo gentes de todas as camadas sociais, fazendo-o contudo por razões diferentes.

Vem de longe o hábito de abandonar os recém-nascidos.

Depois de várias fases começou a generalizar-se o abandono às portas das igrejas.

Os conventos possuíam rodas, espécie de cilindro giratório, aberto num lado e colocado verticalmente, a fim de receberem ali os objectos sem haver contacto directo com o exterior.

[Roda de Expostos. Des. de JV, 1993]
Sendo propício ao anonimato que se desejava, este engenho começou, a partir do século XVI, a ser utilizado para o abandono das crianças, o que se generalizou e veio a ser reconhecido em 1783, por D. Maria I. É ela que determina que “em todas as cidades e vilas do Reino” houvesse Casa da Roda, em lugar discreto para que aqueles que exponham crianças o pudessem fazer sem risco de serem reconhecidos.

Nenhum inquérito era feito para saber o nome dos pais, como se deduz do parágrafo anterior, mas a todo o momento estes podiam reclamar os filhos. Havia sempre um registo daquilo que acompanhava o enjeitado.

Esta medida oficial da criação de Casas da Roda teve o intuito de evitar o número crescente de infanticídios, o que veio a conseguir-se, subindo, como consequência o número de expostos.

Até aos sete anos os expostos eram entregues às amas, regressando nesta altura aos hospícios, onde permaneciam até aos doze, altura em que eram colocados a quem lhes pagasse melhor salário. Até atingiram os vinte e um anos continuavam sobre a protecção do juiz dos órfãos.

O Marquês de Pombal dedicou muito interesse a este assunto, procurando caminho profissional aos expostos, criando com Pina Manique a Casa Pia de Lisboa. (1)

Veremos agora o que podemos referir a nível local.

É de 1837 a primeira notícia que encontrámos e que diz assim: as amas dos expostos devem ter, além dos mil e duzentos réis por mês, no princípio do ano, enxoval completo para o exposto. (2)

Por estas alturas as despesas com os enjeitados pertenciam às Câmaras e nelas se incluíam, entre outras, as da Casa da Roda, rodeira e ama de leite.

Em 1841, reunida a Câmara é de opinião de que “carecendo o telhado da Casa da Roda desta vila de ser revolvido pelas muitas goteiras que já tem, tal despesa seja feita por conta da rodeira, visto que nenhum aluguel paga, devendo assim concorrer com esses pequenos reparos, ficando a cargo da Câmara os maiores”. (3)

[Antiga e desaparecida farmácia, propriedade municipal e onde funcionou a Casa da Roda. Des. de JV, 1993]

Na sessão da Câmara de 11 de Fevereiro de 1842, o Presidente disse que era necessário nomear nova ama de leite e que ele, levado pela necessidade, o havia feito interinamente a favor de Ana Baptista, desta vila, que julgava ser muito capaz não só por ter muito bom leite, mas também por ser actualmente rodeira.

A Câmara transformou a nomeação em definitiva.

Meses depois conclui-se que havia falta de amas de leite visto o ordenado não ser convidativo. Só obrigadas se conseguiam.

Era injusto que só as mulheres da freguesia de Alcoutim fossem obrigadas a criar enjeitados e daqui em diante haviam de ser repartidos por todas as freguesias, segundo o número de fogos de cada uma, à razão de duzentos por exposto, competindo o primeiro que vier, à freguesia do Pereiro.

A título de curiosidade indicamos as rodeiras e amas de leite que identificámos:

1842 – Ana Baptista (rodeira e ama de leite)
1843 – Margarida Rita.
1845 – Inácia Maria, era mulher de Sebastião José de Freitas.
1845 – Pulquéria Maria Cavaca, de Santa Marta.
1849 – Sebastiana Orta, mulher de Francisco Maria Xavier d `Andrade, desta vila.
1853 – Idem.
1856 – Maria Eugénia, mulher de Joaquim Rodrigues, da vila.
1861 – Ana Ventura (deixou de o ser por padecer de moléstia)
1862 – Maria Joaquina.
1864 – Maria Joaquina

Em 1852 o Governador Civil recomenda à Câmara que lhe remeta relatório da administração dos expostos do concelho, acompanhado de mapas explicativos e dos esclarecimentos que se julguem necessários sobre o assunto e isto relativo ao ano de 1851.

O Presidente é de opinião que se insista no sentido de aumentar o ordenado das amas de criação (4). No caso de não ser autorizado, que em contrapartida se permita pagar à rodeira apenas 500 réis mensais, sendo o restante dividido pelas amas de criação. O pedido é feito nestes termos porque se considera o emprego de rodeira absolutamente desnecessário. (5)

Em 12 de Janeiro de 1858 uma pobre mulher da vila de Alcoutim deu à luz uma menina. Para ocultar a sua fragilidade, havia-a mandado expor em Sanlúcar, Reino de Hespanha, donde três dias depois havia sido recambiada e sendo apurado que era sua filha, o Administrador o Administrador lha havia mandado entregar.

Tendo três filhos de tenra idade provenientes do matrimónio e sem ter meios para os sustentar, via-se agora com mais a filha ilegítima pelo que pedia à Câmara que considerasse a filha como exposta e ela como ama de criação, o que veio a suceder, minorando os problemas desta pobre viúva.

Em 1 de Outubro de 1864, as rodas dos expostos em todos os concelhos em que haviam sido suprimidas, como era o caso de Alcoutim, são restabelecidas, havendo assim necessidade de nomear rodeira e ama de leite, o que veio a recair respectivamente em Ana Baptista (que já o era antes da supressão e Maria Joaquina, mulher de José Canelas. (6)

A situação não deveria ter durado muito tempo já que em 19 de Setembro de 1867 a edilidade debate-se com a circunstância de aparecerem expostos e não existir roda nem ama de leite.

Na circunstância a Câmara entrega o exposto a uma mulher que dele cuidasse enquanto não era remetido para Castro Marim. A Câmara resolveu que durante esses dias as mulheres que tivessem esse encargo venceriam 60 réis por dia.

Só treze anos passados obtivemos algumas referências sobre o assunto. Na noite de 12 de Janeiro de 1880 foi exposto um rapaz à porta de Manuel Madeira, desta vila. Depois de baptizado, foi conduzido ao hospício de Vila Real de Santo António no dia seguinte.
Às quatro horas da manhã de 23 de Outubro de 1883 é a vez de ser exposto à porta de José Vasco da Silva, desta vila, uma criança do sexo feminino.

O Presidente da Câmara, Manuel António Torres, em 1886, considera que dos diferentes ramos de serviço municipal, nenhum é mais espinhoso do que o dos expostos. (7)

Na sessão camarária de 12 de Abril de 1917 delibera-se pagar os salários às amas dos expostos, menores de dez anos.

De 1888 a 1898 encontrámos autos de arrematação da renda duma casa na rua do Castelo, chamada da Roda.

Ainda há poucos anos os mais velhos alcoutenejos sabiam localizar a Casa da Roda, ali mesmo ao lado da farmácia e mostravam, para justificar a sua afirmação tradicional, uma cavidade onde diziam que colocavam as crianças.

Já neste século, ainda havia quem se dedicasse ao transporte para Sanlúcar de alcoutinenses e não só, enjeitados. Dizem mesmo que no extinto mercado local se fazia negócio de tal tipo, aparecendo muitos negociantes da serra algarvia que, a coberto de outros, praticavam tal negócio. (8)

Segundo Casimiro Anica, um infatigável investigador algarvio, o Governo Ditatorial saído da Revolução de Maio de 1926, acabou de vez com as rodas. (9)

Terminaremos dizendo que a aldeia de Martim Longo também teve Casa da Roda e sabemos que em 1839 era rodeira, Joaquina Gertrudes, mulher de Baltazar Carrilho e ama de leite, Maria Joaquina Alho, mulher de Manuel Guita. Em 1842 já não existia.
Aqui fica mais esta pequena achega sobre o passado alcoutenejo.

NOTAS

(1)-Dicionário de História de Portugal, 6 vols. (dir. Joel Serrão), Livraria Figueirinhas, Porto, s/d.
(2)-Acta da Sessão da C.M.A. de 2 de Abril der 1837.
(3)-Acta da Sessão da C.M.A. de 21 de Janeiro de 1841.
(4)-Ama de leite aparece substituído por ama de criação.
(5)-Acta da Sessão da C.M.A. de 25 de Março de 1852.
(6)-Acta da Sessão da C.M.A. de 2 de Outubro de 1864.
(7)-Of. Nº 31, de 22.02.1896 (copiador) do Presidente da C.M.A. ao Presidente da Junta Geral do Distrito de Faro.
(8)-Alcoutim, Capital do Nordeste Algarvio…, José Varzeano, 1985, pág. 237.
(9)-“Expostos: A Roda”, in Jornal do Algarve de 16 de Março de 1989.