quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Alcoutim - Recordações II

Pequena nota
Vamos publicar hoje uma “nova” Recordação do nosso colaborador e Amigo, Daniel Teixeira, Director do Jornal RAIZONLINE e que foi publicada no nº 100 daquele Jornal, o 1º número de Janeiro de 2011.

Daniel Teixeira não é alcoutenense pelo nascimento mas tem no concelho de Alcoutim dois dos seus costados, facto que procura não esquecer, como mais uma vez o demonstra.

Na realidade o autor do artigo que tem por título” Manuel Inácio, que fora Palmira”, publicado neste blogue em 6 de Agosto de 2010 é da autoria do nosso colaborador Gaspar Santos e não de Amílcar Felício, como admitiu Daniel Teixeira.
São muito interessantes estas recordações de Daniel Teixeira que vêm enriquecer o património oral alcoutenejo e que desconhecíamos em grande parte.
Ficamos esperando por mais.


JV






Escreve

Daniel Teixeira





Pedindo de novo as minhas desculpas ao amigo José Varzeano por estar a retirar-lhe a integralidade da página / tema (os seus trabalhos espevitam-me a memória) gostaria de recordar aqui algumas das minhas memórias recolhidas sobre este tema dos médicos de alguma forma considerados milagreiros que se encontram normalmente referidos em memórias de sítios ou locais mais pequenos e predominantemente referidos como médicos dos pobres.

(ver texto do José Varzeano aqui)

O Dr. João Dias, referido pelo José Varzeano será um caso à parte e como tal será referido e lembro-me concretamente que a primeira memória que tenho de ouvir falar dele através da minha falecida mãe - «especialista» em memórias e de grande memória até ao final da sua vida - foi a já por mim referida ao José Varzeano no seguimento de um artigo de um colaborador do Blogue Alcoutim Livre - salvo erro o Amílcar Felício - história da mudança de sexo de um homem que tinha nascido com uma deficiência nos órgãos genitais e que fora considerado mulher seguindo um costume médico na altura e dados os conhecimentos e meios imperfeitos que havia nesses tempos: «Em caso de dúvida, fá-la mulher» ao que me consta ensinava-se entre colegas médicos (agora obstetras) na altura.

[O médico Dr. João Francisco Dias]

Encontrei vestígios desse tipo de comportamento na forma não médica quando do estudo de alguns livros de antropologia através da referência em tribos indígenas tanto em Africa como na América e mesmo na Oceânia tudo levando a crer que tal comportamento tomado de forma natural tenha tido lugar em todas as partes do globo. Não havia problemas em termos sociais evidentes durante o período da infância mas em despertando a puberdade o caso acabava por tornar-se complicado mesmo nessas sociedades primitivas.

Estas pessoas normalmente eram colocadas numa casta social específica acabando por tornar-se pessoas com direitos desiguais e normalmente relegadas para a exclusividade dos trabalhos domésticos ou auxiliares, cuidar de crianças, etc. não participando de forma activa na hierarquia normal da sociedade ou tribo, dependendo sempre em termos sociais e económicos dos progenitores (ou a quem fossem vendidos/vendidas). Breve, não eram nem uma coisa nem outra (homem ou mulher) o que visto segundo a linearidade lógica espontânea das sociedades primitivas teria a sua razão de ser: eram elementos desestabilizadores em estruturas delineadas secularmente: não li no entanto nada que me levasse a pensar que houvesse ou tivesse havido eliminação física dessas pessoas. (Radcliff-Brown e Daryl Forde, Engels, Espinas, Morgan, Bachofen, R. Fortune, etc.).

Ora e em relação a esta «operação - cirurgia» do Dr. João Dias foi-me relatado pela minha melhor fonte neste plano (minha mãe) que a pessoa um causa (uma mulher com pelo menos aparente genitália «feminina» mas hormonas masculinas ) era reparada pelo facto de acompanhar muito com os homens e de dar preferência à companhia destes em vez de se integrar no meio que lhe era considerado - artificialmente mas oficialmente - natural, o meio feminino. Este reparo serve apenas para fazer notar o «distúrbio» social que o seu comportamento mais livremente efectuado levantava milhares de anos depois das tribos primitivas e do que se falava sobre o assunto embora tivesse o contra de ser um meio relativamente pequeno.

A outra referência memorial que tenho, menos médica e até um pouco humorada refere-se ao facto de me ser apontado o sítio «exacto» onde o carro do Dr. João Dias tinha ficado avariado durante dias até que o levaram à força de bestas e cordas tendo isto acontecido no caminho cercado (de cercas) da portela do Monte das Velhas. Chamava-se Portela à «porta» de saída para o Monte mais próximo por vezes, outras vezes o mais frequentemente acedido por essa tal de Portela.

[Monte das Velhas. Foto JV, 2009]

Este preciosismo quanto ao local exacto do evento funcionava assim como que um ponto de honra para o pessoal de Alcaria Alta até por razões para mim paradoxais - tinham tido o carro do Dr. João Dias, ali, precisamente ali, durante dois ou três dias. O motivo da deslocação seria uma consulta a alguém do Monte (ao que me lembro um familiar de um Lavrador) e naqueles tempos para haver uma ida ou pedido de vinda de um médico - do único médico, diga-se - era porque já tinham falhado todas as tentativas caseiras.

[Vista parcial do monte de Alcaria Alta. Foto JV]

Aparentemente o Dr. João Dias teria enveredado directamente da estrada Alcoutim (Quatro Estradas dos Balurcos) - Martinlongo e metido pelos terrenos de cultivo que naquela zona até são bem planos e teria chegado até ali (percorrendo talvez 6 a 10 kms de cultivo ou mato, depende da altura) vindo da direcção do Monte das Velhas em linha quase recta para Alcaria Alta. Ali chegado as lajes e as pedras irregularmente compostas no solo puseram fim à sua viagem...mas não à sua tarefa, vindo logo gente buscá-lo em besta.

Ora estas referências dão alguma quase magia aos acontecimentos: automóveis talvez houvesse mais alguns na sede do Concelho mas não mais que um ou dois, seguramente; médico o Dr. João Dias era o único (havia outro o Dr. Mendonça mas para os lados de Cachopo) e quem fizesse uma operação daquelas também só havia uma pessoa (tanto para a fazer como a quem ela poderia ser feita); alargue-se tudo isto a toda a região algarvia, isolada ainda do resto do país pela Serra do Caldeirão e por uma estrada com as tradicionais nunca contadas 365 curvas, com um caminho de ferro incipiente (o troço Faro - Vila Real de Sto António foi completado em 1906) e teremos um trabalho verdadeiramente heróico da parte do pessoal de saúde em zonas de mais difícil acesso.
A capacidade de improvisação era necessariamente grande e a falta de medicamentos tanto por não existirem como por serem sempre caros para quem praticamente não conhecia o dinheiro tornavam as situações propícias à legenda popular e a algum exagero milagreiro.

Em Faro (cidade) tivemos do Dr. Silva Nobre, também conhecido médico dos pobres, que também tem um busto em frente à casa onde habitou e onde foi o seu consultório, em frente a um Banco, rodeado de cervejarias e lojas de pronto a vestir e em Faro/Loulé a Dr.ª Fernanda Mealha, dermatologista e especialista conceituada em lepra, e força da especialidade - e não só - também considerada médica dos pobres, há poucos anos falecida, num relativo esquecimento, erradicada que foi - quase - a lepra.

A lição que pretendo tirar de todo este conjunto de referências acaba por responder um pouco à pergunta que o José Varzeano faz directamente e deixa também implícita outra parte no final do seu texto: o mito popular médico, tratar dos pobres, «fazer milagres» ou tratar dos mais pobres entre os pobres como o dizia Madre Teresa de Calcutá (ela também praticamente esquecida) não rende outra memória senão a memória popular. E esta, como sabemos, sendo curta de geração não tem forma de ser relembrada porque o orgulho institucional nos seus filhos ainda é bem mais curto.