Pequena nota
Apresentamos hoje o último artigo, que tenhamos conhecimento, publicado pelo nosso saudoso Amigo. Não sei, mas possivelmente este teria sido o último.
Nesta altura e são passados trinta e sete anos, já eu escrevinhava sobre Alcoutim e Luís Cunha, pelo que me dizia, era um dos meus leitores.
Sou eu o amigo que lhe deu a conhecer o que ia acontecer à Igreja da Misericórdia e lhe pedi para escrever algo, como ele sabia, para denunciar a situação e tentar chamar a atenção para o facto.
Concordou inteiramente com a minha opinião, como se deduz do texto e teria libertado a sua consciência, como bom filho que era desta terra.
Já se sabia que de nada iria servir. Mais ninguém levantou a sua voz. O que eu me apercebia é que toda a gente estava satisfeita por ir ter um Centro de Saúde – não existia o mínimo de sensibilidade para defender o seu património. Todo o altar e arco triunfal de pintura marmórea penso que da época de D. João VI foram arrasados.
A filha de um alcoutenense que presidiu à Câmara resgatou num amontoado de tábuas que ia para o lixo, o brasão real de D. João VI. As próprias pedras sepulcrais foram mudadas do seu lugar de origem.
A Igreja ficou reduzida a metade e transformou-se numa simples capela mortuária, sem qualquer interesse artístico.
Confesso que me sinto reconfortado por ter dado a conhecer a muitos leitores deste blogue esta série de artigos muitíssimo bem escritos por este nosso saudoso Amigo e que de outra maneira seria muito mais difícil conhecer
A foto amavelmente cedida por sua filha, Dra. Margarida Cunha, partilho-a com os leitores nesta “postagem”.
JV
Escreve
Luís Cunha
(PUBLICADO NO JORNAL DO ALGARVE, nº 861, de 22 de Setembro de 1973)
Mais pelas tropelias dos homens que por efeito das partidas que o tem às vezes prega, pouco se sabe do passado de Alcoutim.
Os arquivos municipais, ao que cremos, nunca foram vasculhados por alguém habilitado, e, pelo menos à primeira vista, os mais antigos documentos ali existentes, são os diários das sessões a partir de mil oitocentos e vinte e tal, já que uma das primeiras registadas é a consagrada ao juramento da Constituição de 1820 decretada por D. João VI em 1825. Vários incêndios e outros acidentes dão causa a essa raridade.
O alcaide da vizinha S. Lucar contava terem existido no seu “ayuntamiento” ou na Igreja local, inúmeros livros levados de Alcoutim durante a dominação e que desapareceram.
As tropas napoleónicas também por cá fizeram tropelias, segundo parece e a seguir o bando de salteadores que acompanhava o Remechido incendiou por duas vezes a Câmara e demais repartições. Talvez por tudo isto não exista nada anterior a essa data.
Na década de 30 do presente século – diz-se – saiu da Câmara enormíssima quantidade de papeis vendida a farrapeiros. Pomos isso em dúvida, pensando tratar-se de satisfação a algum apelo dos arquivos históricos, na recolha de documentos. Certo é que, pelo caminho da procura de documentos, quer localmente, quer em Lisboa, onde já foi tentada, pouco se tem conseguido. Um amigo radicado há anos em Alcoutim e que por natural temperamento dedica parte do seu tempo a este género de pesquisas, tem-se visto em embaraços por esta razão. Deste modo, restar-nos ia a tradição oral, outrora muitíssimo rica, mas até dela estamos privados porque os que a podiam haver transmitido, desapareceram sem ter a quem fazê-lo.
Vem este largo preâmbulo a propósito do perigo que corre a velha igreja da Misericórdia de Alcoutim, a qual, segundo parece, vai ser destruída na sua parte mais importante (altar, arco triunfal, lápides sepulcrais e porta lateral encimada por um lintel de 1628) para adaptação a Centro de Saúde.
[Lintel de 1628 (*). Foto JV]
É na realidade lamentável, não só porque sempre será mau o remedeio – com perdão por meter foice em seara alheia – como por se perder o que tanto esforço e abnegação custou a essa pobre Irmandade, das primeiras a fundar-se no Reino, e que, sempre pobre e sem auxílios externos, tudo deveu ao muito carinho das antigas populações concelhias. Desconhece-se a data rigorosa da sua fundação, mas se em uma das pedras sepulcrais se assinala 1513 como a de um passamento, é evidente que a igreja lhe será anterior. De qualquer modo, mesmo que de 1513, terá sido das primeiras do País, já que a instalação da Irmandade em Portugal se deve a frei Miguel de Contreiras, em 1498, durante a regência de D. Leonor, viúva de D. João II, na ausência em Espanha de seu irmão D. Manuel.
Não podemos deixar de fazer coro nas lamentações do amigo que de Alcoutim nos presta tais informes porque, se a terra é de si tão pobre, como privá-la mais ainda, derrotando o pouco que lhe resta?
[Luís Cunha. Foto gentilmente cedida por sua filha, Dra. Margarida Cunha]
Ali bem perto, na Praça da República, exibem-se vergonhosamente, uma velha cadeia em ruínas e um grande quintalão anexo, cujos muros, no mesmo estado, fazem ao visitante a pior apresentação possível da vila, dois autênticos mamarrachos, que não podiam ter melhor utilização, resolvendo de uma vez dois grandes problemas; a falta de hospital e o saneamento da praça.
[A igreja da Misericórdia em 1970, por isso antes de parte ter sido anexado ao Centro de Saúde. Foto JV]
A benemérita instituição, com seus períodos altos e baixos, prestou até tempos recentes, inestimáveis serviços mas no princípio deste século entrava definitivamente em decadência. Conhecemos-lhe ainda a altruísta missão do transporte de todos os falecidos pobres e o não pouco arriscado serviço durante a “pneumónica”.
Um idoso e pobre amigo do monte de Afonso Vicente, a propósito da extrema miséria que o lançara na necessidade de este4nder a mão à caridade pública, contava-nos, há anos uma antiga forma de caridade tradicional cuja belisca não resistimos à tentação de relatar.
Em tempos antigos – disse-nos – existia em quase todos os montes uma casita chamada dos pobres e que mais propriamente se destinava às pessoas em trânsito, porque se desconheciam então no concelho quaisquer pedintes. Para os indivíduos com as suas actuais condições, sem familiares e incapazes de mais nada, agia-se muito singelamente da maneira seguinte: nessa casita, pertença da Irmandade, existia um dos seus hábitos com capuz e uma alcofa.
As amassaduras faziam-se so sábado e em nenhuma faltava o pão ou “brendeiro”para o necessitado. À meia noite, um dos irmãos, embuçado, percorria as casas e depositava a colheita à porta do pobre. Sem ficar especialmente devedor a qualquer, este não era nunca o menos beneficiado, pois de tudo ali vinha em quantidade mais que suficiente para a semana.
No princípio deste século as coisas já se tinham modificado bastante e a Irmandade atravessava um período de crise, mas a emigração é que acabou de arruinar a vida dos campos. Os velhos e inválidos que restam quase não agricultam e só raramente engordam o porquito. Recebem dos ausentes o dinheiro com que adquirem tudo, por vezes até temperos, e se naquela antiga forma nada lhe custava dar um pão ou naco de toucinho, são agora incapazes de ceder um só tostão, norma até há bem pouco praticamente desconhecida na terra. Daí a extrema penúria em que se encontrava aquele amigo.
É deveras curiosa a explicação simplista que a seguir nos deu, do encadeamento de circunstâncias conducente a este estado de coisas: substituição do arado pela charrua, constituição do trigo em produto de venda como efeito de legislação moageira que, encerrando azenhas e moinhos de vento, obrigou os homens a isso; esgotamento e degradação dos solos por falta de pousios e, por fim, emigração em massa.
Embora discordando de tão singela explicação, já que não existe entre o progresso e a caridade o mais pequeno ponto de atrito ou incompatibilidade, lamentamos que ela haja pura e simplesmente desaparecido, em vez de evoluir, acompanhando nesse mesmo progresso a abertura da inteligência às novas condições.
Quanto à iminência de destruição da parte da igreja da Misericórdia mais valera estarmos enganados em tal suposição por não haver modo de podermos concordar com ela, não considerando que seja a única nem a melhor solução, pois o que irremediavelmente se destrói, mal resolve, se é que o faz, o que se propõe e relega “ad vitam aeternam” a questão dos dois mamarrachos que apontámos.
Nota
(*) - Esta porta com a adaptação ao Centro de Saúde foi retirada à igreja e englobada naquele. A fotografia é recente e por ela se vê a pouco sensibilidade que existe para preservar o património visto não ter havido o cuidado de o mandar proteger, evitando o que aconteceu, ficou pintado.