quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O comércio da laranja em Alcoutim

Pequena nota
Mais um importante apontamento que o nosso colaborador Gaspar Santos traz a este espaço, recordando e interrogando-se sobre algo que teve importância na economia alcouteneja e que parece ter desaparecido completamente.
Ainda em finais dos anos 60 do século passado a laranja alcouteneja era o sustentáculo de algumas famílias da vila.
Os laranjais ocupavam as margens da parte terminal da Ribeira de Cadavais, estendendo-se depois pela margem direita do Guadiana, a norte da Vila.
Eram muito sumarentas e doces, procuradas pelos comerciantes do ramo vindos do litoral algarvio que como diz o nosso colaborador as compravam na árvore.
Era de tal maneira que por vezes os filhos da terra, principalmente os que estavam fora, pretendiam adquiri-las e já não as encontravam.
Hoje os laranjais estão praticamente abandonados. Não conheço as razões para que isto tivesse acontecido mas também não é difícil imaginá-las.
Se nós não defendemos o que é nosso, quem o há-de defender?


JV




Escreve

Gaspar Santos


[Velhos laranjais na parte cimeira das margens da Ribeira de Cadavais. Foto JV]

Quem vem de fora, em noite sem vento, na época da Páscoa, passadas as Cortes Pereiras, sente o vale da Ribeira de Cadavais. O ar, que é sempre agradável, de múltiplos cheiros, tem agora o suave e ao mesmo tempo intenso aroma da flor de laranjeira. Mas não é só o cheiro da flor o mérito destas laranjas. Também, quando madura, é sumarenta, de casca fina, sem caroços, saborosa como não há outra e assim é reconhecida por todos que as provam.

Alcoutim tem muita laranja. E dela já teve outrora um bom rendimento. Quando estava em flor, negociantes de Moncarapacho compravam-na ainda na árvore. Depois, em Dezembro, Janeiro e Fevereiro enchiam grandes cabazes de ripas de madeira e, de barco até ao comboio, ou de camioneta, levavam-na para o Mercado da Ribeira em Lisboa. Um cunhado meu a quem há anos dei uma dúzia delas dizendo: - “come que são as laranjas melhores do mundo!” Dias depois ele me respondeu: “as melhores do mundo não sei, não conheço todas, mas que são muito boas, são”.

[Laranjais próximo da foz da Ribeira de Cadavais. Foto JV]

E hoje perdem-se. Por razões que são com certeza várias, os negociantes de fora deixaram de procurar estas laranjas. E em Alcoutim temos muita produção e muitas pessoas a produzi-las o que torna muito reduzida a sua procura local. Uns meus familiares que no ano passado estiveram uns dias em Alcoutim, no início de Março, pediram num restaurante um copo de sumo de laranja e a resposta foi que não tinham, não faziam tal coisa… apesar de se avistarem a apodrecer nos campos. Admiramo-nos como ainda as cultivam, quando se comem tão poucas. Mas isto diz-nos que ainda não há crise ou pelo menos que ainda não chegou aqui a moda do sumo. Quando for oportuno não é difícil nem caro que o Quiosque ou alguns restaurantes comprem e façam funcionar um espremedor eléctrico de laranjas e… já se tem o sumo todo que se quiser.

Por outro lado, temos no país o nosso “progresso” que até parece de novo-rico. Endividamo-nos ao estrangeiro com importações excessivas, algumas escusadas, desnecessárias. Comemos laranja espanhola, do Brasil e de África do Sul; melão de Espanha e do Brasil, sumo de laranja (por sinal muito saboroso) da Califórnia E.U.A., espargos do Peru (América latina). Batata de Espanha e de França. E, até já vi vender em Alcoutim batata-doce dos Estados Unidos da América. Nos cereais como nos frutos secos, o Algarve de exportador passou a importador. São os figos e as amêndoas da Argélia e da Turquia. Nem sei mesmo se alguma alfarroba não vem também de fora e se os tradicionais bolos de amêndoa ainda são feitos com alguma amêndoa portuguesa. E os cereais então, são quase todos importados. Como se já não bastasse termos que importar todos os combustíveis que os automóveis consomem.

Em parte são consequências do abandono da nossa agricultura. Por um lado incentivou-se muita gente a afastar-se do campo, porque sendo muitos os agricultores, isso configurava um mundo atrasado. Por outro lado os preços das produções deixaram de ser compensadores. Há mesmo outros frutos que se perdem nas árvores por não pagarem a sua colheita.

Mas hoje, na TV e nos jornais já vemos alguns daqueles que nos quiseram convencer das vantagens do abandono da agricultura a querem-nos “desconvencer” disso e apregoam agora os benefícios do regresso à agricultura, para sermos um bocado mais auto-suficientes. Há mesmo quem aconselhe a fazer uma reserva alimentar preventiva. É bem verdade que no mundo, à medida que alguns países mais carenciados vão tendo acesso a alimentos, eles vão começar a escassear e no futuro teremos que voltar a aproveitar todas as terras, mesmo as que hoje se encontram incultas por serem pouco produtivas.