sábado, 21 de maio de 2011

O Celeiro de Alcoutim

Uma história vivida não tem tempo de calendário
– tem-no só no que se viveu.


(Vergílio Ferreira, escritor português (1916-1996)





Escreve


Gaspar Santos



[O antigo celeiro. Foto JV]

A produção e comércio de cereais no concelho, como hoje relembro, já me deviam ter ocupado. Foi neste comércio e neste Celeiro que comecei a trabalhar em 1945. Da sua prática e evolução, em grande parte por mim acompanhada, não datarei alguns factos. Falta tempo para essa pesquisa. O que recordarei, sem calendarizar, é apenas por memória.

O ano de 1932, sempre ouvi dizer, foi de tão grande colheita, que muito trigo se desperdiçou. Na Rua do Município, onde hoje é um bar, havia um local de armazenagem de trigo a granel, a escorrer pelas frinchas da porta, que algumas pessoas aproveitavam para as galinhas. Essa fartura era já, em parte, consequência da Campanha de Trigo. Uma produção tão grande que nunca mais voltaria a repetir-se.

A Campanha do Trigo que o Estado Novo começou em 1929 destinava-se a alargar as áreas de cultivo, aumentar a produção e aproximar o nosso país da auto-suficiência em cereais, que se chegou a atingir e até se ultrapassou, a ponto de o nosso mercado interno (as moagens) não terem capacidade de escoamento e de pagamento.

Nas áreas serranas do Algarve, como o concelho de Alcoutim, as autoridades desejavam aumentar o aproveitamento das terras, embora se soubesse à partida da sua baixa produtividade. Sabe-se hoje que acabou por ser uma campanha desastrosa, pois mais tarde resultou em grande quebra da produção. Por um lado, por falta da regeneração dos solos, devido a sementeiras sem tempo de pousio suficiente; e por outro, à redução das áreas de semeadura, pois a terra, sem revestimento de árvores e arbustos e sujeita a anos sucessivos a ser arranhada pelos arados, foi arrastada pelas chuvas ficando muita rocha estéril à superfície.

Nas planuras alentejanas, onde a produtividade é elevada e não tem aqueles problemas de erosão, a renúncia à campanha teve outros motivos: nos primeiros anos com excesso de produção as moagens não escoavam o trigo e portanto não pagavam o que se colhia; mais tarde, os preços garantidos não acompanharam os custos de produção, e deixou de ser compensador produzir.

[Seara de trigo]

Para orientar e disciplinar o comércio de cereais (trigo, milho, cevada e centeio) foi criada em 1933 a FNPT, Federação Nacional dos Produtores de Trigo, com o exclusivo desse comércio. Em Alcoutim, poucos anos depois a FNPT construiu um celeiro e iniciou actividade. Eram seus empregados Sebastião Quaresma, José Teixeira e José Vicente Romana.

Quando as coisas começaram a correr mal a F.N.P.T. mandou José António Duarte Moura gerir aquela Delegação e averiguar sobre o mau funcionamento e sobre as queixas que muitos produtores de trigo apresentavam. Foi durante a gestão bastante competente deste funcionário, mais tarde Inspector, que foi admitido Leopoldo Vicente Martins. Após a saída de Duarte Moura para outras tarefas veio Abel Fernandes Saraiva gerir a Delegação da F.N.P.T. durante mais alguns anos. E, daí para diante o funcionamento deste serviço confundiu-se com a vida do Leopoldo.

No início da década de 40 foi criado o Grémio da Lavoura de Castro Marim, Alcoutim e Vila Real de Santo António, com sede em Castro Marim que passou a assegurar o serviço da F.N.P.T com carácter de exclusividade: compra, armazenagem e venda de trigo, cevada e milho.

O Grémio da Lavoura tinha ainda outros rendimentos que não eram só os que auferia da Federação. Recebia quotas dos sócios, a que eram obrigados todos os proprietários de terras pagando imposto predial rústico superior a cem escudos anuais. Tinha resultados da venda de adubos, fungicidas, pesticidas e ferramentas agrícolas, charruas e suas peças de desgaste; venda de batatas de semente, rações para gado e sêmeas; e, ainda, percentagem nos prémios dos seguros de incêndios nas searas.
Desde o início do Grémio e até à morte ocorrida no princípio dos anos 70, Leopoldo foi encarregado do Grémio em Alcoutim, continuando as tarefas que executara na F.N.P.T. Durante alguns períodos de férias de Leopoldo e também após a sua morte o trabalho foi assumido por José Bento, casado com a D. Nascimento que enquanto solteira habitava na Casa dos Condes.

Segundos na hierarquia da Casa da Lavoura de Alcoutim (delegação do Grémio) foram sucessivamente José Barão, João Francisco Mestre, António Assunção Valério, Gaspar Santos, Manuel Pedro Rodrigues, António Antunes, Maria Angelina. Para além destes “segundos” havia sempre mais um jovem que colaborava, sem remuneração ou que recebia uma pequena gratificação. É justo hoje recordar que muitos dos jovens que passaram pelo celeiro obtiveram conhecimentos e disciplina de trabalho e de horários que lhes foram muito úteis nas suas vidas.

[Antiga eira há muito desactivada. Foto JV]

Além destes havia sempre dois homens que tinham o “exclusivo” das pequenas cargas e descargas, embora não fossem empregados do Grémio. Quando o trigo entrava e eles o descarregavam eram pagos pelo produtor desde que este não o quisesse descarregar.

Quando o trigo saía o transporte até ao camião era pago pelo Grémio. Trabalharam assim Lazaro Martins e Alfredo de Horta; Depois Alfredo de Horta e Joaquim Adriano; e depois Alfredo de Horta e o filho António de Horta.

Depois de Leopoldo ter falecido, José Bento passou a garantir os serviços apenas dois ou três dias por semana, até ao encerramento definitivo do celeiro que ocorreu em 1976. O celeiro foi depois vendido a um particular, não tendo ainda hoje utilização visível.

O concelho de Alcoutim tinha até meados dos anos 70 do século passado auto-suficiência de trigo, pois os produtores vendiam ao celeiro a produção que excedia o seu consumo. Por sua vez o celeiro além de abastecer as moagens de Pereiro e Martinlongo no concelho de Alcoutim, vendia ainda para fora, sendo o cereal transportado por camionetas ou por navio a partir do cais para as moagens de Emídio Lima de Mértola, Moagem de Cacela, Araújo Ribeiro em Tavira, para os Moinhos de Santa Iria de Azóia, Manutenção Militar em Lisboa, Massas Leão de Santarém etc.

Na compra como na venda o trigo tinha um preço que incluía 1$50 de subsídio de cultura, mais uma parcela tabelada entre cerca de 1$20 e 1$70 salvo erro, que variava com o mês em que era transaccionado (para remunerar a armazenagem) e com a sua qualidade medida pelo peso por hectolitro ou peso específico, que era obtido pela pesagem rigorosa de um litro de trigo recolhido de amostra aleatória.

Além da compra e venda de cereais, a etapa de armazenagem dava trabalho e preocupações no acompanhamento da saúde do cereal armazenado, pela simples observação da presença de gorgulho e traça e/ou pela tomada de temperaturas. Esta tomada era feita segundo uma apertada quadrícula horizontal e pelo menos a três profundidades do granel, para detecção de fermentações.

A traça e o gorgulho tratavam-se com a desinfecção do trigo injectando no granel tetracloreto de carbono, enquanto para as temperaturas altas indiciadoras de fermentações bastava dar a volta ao cereal, arejando-o para secagem da humidade e retirar eventualmente algum cereal com bolor. Um desleixo em práticas destas podia estragar toneladas de trigo.

[Cartaz de Companha do trigo]

Havia ainda um fenómeno curioso, mas normal, na armazenagem, devido à humidade: vendia-se mais trigo do que se comprava e isso era previsto superiormente, com elevado grau de probabilidade. É que o trigo acompanha e incorpora a humidade do ar. A compra ocorria no verão com o ar seco e a venda no inverno e primavera quando o ar é húmido.

O Grémio da Lavoura de Castro Marim, Alcoutim e Vila Real de Santo António ainda existe em Castro Marim, sendo, segundo penso, a única excepção em Portugal. É uma entidade privada cujos proprietários decidiram manter o antigo nome.

Tenho a convicção de que se exagerou extinguindo completamente a campanha do trigo, na enxurrada do fim do corporativismo e do fim do monopólio da comercialização dos cereais. A total liberalização da importação de cereais vigora a partir de 1 de Janeiro de 1990, com um ano de antecipação relativamente às exigências da adesão à CEE. Pensou-se que era mais barato comprar o trigo fora do que cultivá-lo no país.

Depois, ainda se deu mais um novo contributo para o abandono da nossa agricultura, ao incentivar a redução das pessoas nelas ocupadas. Quem tiver boa memória ainda se lembra de muitas vezes ouvir na TV “entendidos” dizerem: - temos mais de 35% de pessoas na agricultura, é preciso só ter 5 a 15%. A reacção ao incentivo foi também exagerada, com o abandono dos campos e agora muitos dos produtos que comemos (e não são só os cereais) vêm do estrangeiro, como se já não bastasse os combustíveis para nos endividar.


Hoje volta a falar-se no problema alimentar: Que se importa quase tudo! E que temos os campos abandonados! E quem fala agora são os mesmos “entendidos”. Até já ouvimos o responsável pelo comércio externo a sugerir constituirmos uma reserva alimentar – uma espécie de banco alimentar geral.

No concelho de Alcoutim a produtividade dos cereais é pequena. Sobretudo nas zonas mais montanhosas das freguesias de Alcoutim e Vaqueiros ao semear cereais iríamos aumentar a erosão reduzindo a área disponível, mas nas outras freguesias a cultura de cereais devia ter-se continuado a estimular. Não se tinham abandonado os campos e semear trigo, cevada, centeio e aveia teria sido aposta a contrariar a desertificação e como fomentador da pastorícia e, consequentemente dos lacticínios e da carne.

Optou-se mais tarde pela florestação de pinhal. Está por provar se foi a melhor opção!