quinta-feira, 19 de maio de 2011

O grande êxodo dos finais dos anos 50 princípios dos anos 60




Escreve



Amílcar Felício




Alcoutim fervilhava de gente na primeira metade do século passado, chegando o Concelho a atingir o seu pico na década de cinquenta com quase 11000 habitantes, gerando-se naturalmente um grande dinamismo em todo o Concelho que alimentava por sua vez, toda uma rede de serviços e comércio bastante significativa para a grandeza da Vila, com a existência inclusive de pequenas indústrias com uma razoável capacidade de produção como o Lagar, a Forja ou a Moagem no Pereiro e algumas importantes oficinas principalmente de sapataria, carpintaria e latoaria. Curiosamente, ainda continuavam em actividade alguns Moinhos de Vento em plena década de sessenta imagine-se!

[Moinho da Pateira. Foto JV, 2011]

Os Montes mais próximos como a Corte da Seda, a Corte do Tabelião, o Marmeleiro, as Cortes Pereiras, a Afonso Vicente, os Balurcos ou os Montes do Rio à semelhança dos outros Montes do Concelho, abarrotavam de gente e até aquelas pequenas casas de campo nos arredores da Vila como o Rossio do Ti Gato, a Eira Branca, o Ti Robalo, o Brejo, o Alcaçarinho e o Enxoval estavam totalmente ocupadas por famílias de caseiros ou de rendeiros em plena laboração. Os postos da Guarda-Fiscal funcionavam em pleno quer até Mértola, quer até Vila Real de Santo António com cerca de 6 unidades por Quartel.

Alcoutim era auto-suficiente pelo menos para as necessidades da altura. Desde alfaiates a costureiras, barbeiros e sapateiros, carpinteiros e pedreiros, ferradores e ferreiros, latoeiros e caiadores, camponeses e assalariados, taberneiros, merceeiros e vendedores ambulantes de tudo e mais alguma coisa pois até ourives e cauteleiros ali iam todas as semanas, padeiros e boleiras, aguadeiros e lavadeiras, talhantes e pescadores, barqueiros e contrabandistas, pregoeiros, capadores e amoladores, ceifeiros e enxertadores, pastores e fabricantes de queijo e almece, leiteiros e apicultores, cardadores e tosquiadores, tecedeiras, carteiros e guarda-fios etc., etc., etc., existia de tudo um pouco para as necessidades de então.

Com a Grande Crise Nacional como pano de fundo que germinava desde os finais dos anos cinquenta com as Eleições Presidenciais e que arrastaria grandes sectores da população e até alguns sectores progressistas católicos descontentes com o regime e que se acentuaria nos princípios da década de sessenta e com a conjugação de uma série de factores próprios como veremos mais adiante, Alcoutim não resistiria a tamanho terramoto afundando-se na sua própria crise, com o êxodo de famílias inteiras ou na sua quase totalidade, ou para Lisboa aonde preenchiam os lugares deixados vagos pelo grande surto de emigração crescente ou para o Baixo Algarve aonde o Turismo começava a despontar. Em 1960 o Concelho de Alcoutim pouco passaria já dos 9000 habitantes.

Assisti ao início daquela debandada geral com um nó na garganta. Estávamos nos princípios da década de sessenta. Daqueles que comigo tinham crescido e brincado como irmãos, pertencentes às famílias mais populares e mais numerosas de Alcoutim, já nem rasto havia. Basta referir as grandes famílias alcoutenejas com 8, 9 ou 10 elementos que zarparam definitivamente como os “Pandaretas”, os “Estragados” do Ti Carrolino, os Lázaros para não referir outras de igual tamanho e das quais sempre ia ficando um ou outro progenitor e uma ou outra filha como os Barões, os Eliseus, os “Afonsos Costa”, a família da Dª Maria Tomásia, a família do Sr. António do Vinagre “o Enterrador” etc., e que sempre iam marcando presença.

[Rossio da Vila. Foto JV, 1974]

Pareciam bandos de cegonhas que no final de cada Verão partiam depois de nidificarem, com a diferença de que nunca mais voltavam. A minha geração implodia em plena adolescência, mantendo-se apenas de um modo geral as classes mais desafogadas cujos filhos ou as filhas andavam a estudar mas voltavam sempre nas férias e que politicamente poderemos caracterizar como pequena burguesia e um ou outro da média burguesia e que continuariam com os seus primitivos remos a remar contra a maré, quando o barco o que precisava era de um motor para andar para a frente.

De facto a célebre Campanha do Trigo lançada por Salazar em 1929/30 com a erosão e o empobrecimento cada vez maior das terras, já de si muito pobres, devido ao seu cultivo intensivo segundo os estudiosos, começava a dar os seus frutos com terrenos cada vez mais fracos e aonde a produtividade nos melhores anos já não passava das “7 sementes” como diziam os camponeses se a memória não me falha. Se bem me lembro de alguns desabafos que ouvia aos camponeses desencantados fazendo o balanço das suas colheitas, uns diziam que “este ano não tive mais que 5 sementes”, outros diziam “eu ainda tive 6 sementes”, isto é, seis vezes mais do que aquilo que tinham semeado.

Na realidade um Guadiana cada vez com menos recursos associado ao colapso completo de uma agricultura tradicional, arrastaria consigo toda uma série de actividades e dinâmicas que ela própria alimentava. A chegada cada vez mais espaçada de grandes barcos de adubo à Vila e de todo a azáfama que por ali se gerava na descarga e na carga posterior para os diversos Montes, diminuía a olhos vistos. O próprio Guadiana cada dia que passava ficava mais calmo e já nem parecia o mesmo, pois os barcos à vela começavam a rarear também e os de pesca já tinham sido mais numerosos. As Minas de São Domingos por outro lado já tinham tido melhores dias, diminuindo drasticamente o tráfego dos barcos de minério de grande calado que faziam a alegria da pequenada à sua passagem e que empregavam também gente do Concelho naturalmente. Mantinha-se o velho Gasolina com as suas viagens regulares entre Mértola e Vila Real de Santo António e que sempre o iam animando um pouco. A Forja, o Lagar e a Moagem entravam também em declínio e o movimento de camiões ou carroças para o Celeiro também começava a abrandar. Por arrasto alguns comerciantes começavam a desistir. Por outro lado a inexistência de um núcleo de empreendedores capaz de reverter esta situação e um Aparelho de Estado esclerosado e insensível a esta sangria, eram um somatório de factores de peso que se conjugavam dramaticamente proporcionando a debandada geral.

Se a morte do Dr. João Dias nos meados da década de cinquenta já tinha constituído um duro golpe ao difícil dinamismo que o Concelho e a Vila iam conseguindo, a conjugação de todos aqueles factores constituiriam um grande desafio que Alcoutim não tinha forças para enfrentar. Alcoutim dos anos cinquenta, Alcoutim da solidariedade e dos serões familiares entre os vizinhos à roda da braseira nas noites rigorosas de Inverno e de amenas cavaqueiras e cantares alentejanos nos poiais das casas nas noites cálidas de Verão, desmoronava-se socialmente. Alcoutim sociedade fechada sobre si própria que inventava a sua própria cultura e formas de diversão, desaparecia um bocadinho todos os dias.

[Uma rua da aldeia de Martim Longo. Foto JV]

Faça-se justiça às gentes de Martim Longo que tentavam teimosamente não desistir, o que sempre me deu que pensar pelo seu empreendedorismo, revelando um inconformismo e uma capacidade de imaginação invejável e que Alcoutim nunca acompanhou. Lembro-me de ouvir contar em miúdo de que quando o preço da amêndoa caiu a pique e que pouco seduzia os proprietários a fazer a sua colheita e o amanho e a poda dos amendoais, eles terem inventado uma máquina de partir amêndoas e passarem a vender o miolo muito mais valorizado, compensando assim a baixa de preço. Lembro-me também do pequeno Zé Rosa, dez réis de gente cheios de iniciativa empresarial ainda um jovem com vinte e poucos anos, embora 5 ou 6 anos mais velho do que eu, (foi muitas vezes o guarda-redes da nossa equipa de futebol, o Grupo 1º de Dezembro de Alcoutim: deveria ter sido uma das primeiras “transferências” nacionais e acho que lhe chamávamos o Zé Rato pela sua elasticidade!) ainda um simples funcionário de base camarário (não sei precisar se chegou a pertencer aos quadros da Câmara) mas já a congeminar naquele tempo ideias para o futuro, salvo erro uma oficina de bicicletas na altura. Era um homem fascinado pelo Remexido e foi a ele que ouvi pela primeira vez falar naquele guerrilheiro miguelista. Hoje parece que é o 2º empregador do Concelho a seguir à Câmara, com uma estratégia bastante interessante assente na valorização das “nossas próprias coisas” e com locais de venda próprios por esse país fora, para resistir a tempos tão difíceis e aos tubarões que tudo querem abocanhar.

Terá sido aquele Remexido que espalhou para aquelas bandas estas sementes de inconformismo e de insubmissão? Vá-se lá saber as razões do fenómeno... O que é certo é que provavelmente terá sido das poucas aldeias em Portugal a possuir GNR desde a 1ª metade do séc. XX devido aos desacatos constantes e aos jogos ilícitos que se prolongavam pela noite dentro segundo se dizia, mas ao mesmo tempo indiciador de um núcleo populacional importante, activo e dinâmico. Lembro-me de se contar que mesmo depois da chegada da GNR e com a consequente proibição dos jogos, eles com grande imaginação inventavam outros, continuando a jogatana à luz do dia e até mesmo nas barbas da GNR: cada um cuspia para o chão e aonde a primeira mosca pousasse estava encontrado o ganhador da aposta!

Alcoutim pelo contrário baixava os braços e perante aquele descalabro só a pequena burguesia comercial tentava sobreviver naqueles tempos sem grandes inovações, como referi anteriormente e mais um ou outro artesão como sapateiros, latoeiros, carpinteiros etc., assim como um ou outro núcleo de pescadores e uma ou outra casa de campo embora cada vez mais desfalcadas, pois que os mancebos à medida que a tropa ia chegando lá iam às “sortes” despedindo-se depois da Vila nesse mesmo dia com os seus cantares tradicionais, fazendo uma roda abraçados nos pontos estratégicos e assim partiam mais uns quantos para nunca mais voltar... Era uma tradição de despedida que tinha raízes no dia das “sortes” e que cumpriam religiosamente. Para estes mancebos de origem camponesa a sua partida era normalmente mais tardia por razões óbvias, pois era neles que assentava a economia da casa e era a tropa o seu trampolim para o salto que dariam sem regresso. Contudo nas famílias camponesas ficariam sempre para lá dos progenitores mais agarrados à terra naturalmente, uma ou outra filha à espera de que “aparecesse” um Guarda-Fiscal jeitoso para partirem depois elas também. Foram os grandes resistentes da década de sessenta sem dúvida. Resistiriam todos afinal só mais uma década. Em 1970 já não chegavam sequer a 7000 almas no Concelho e em 1980 já seriam só 5622 habitantes não parando de se agravar este descalabro.

Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas em 2006 seriam apenas 3272 habitantes no Concelho, com a agravante de mais de 40% terem mais de 65 anos de idade e de ser o Concelho do Algarve com o mais alto índice de envelhecimento, a uma grande distância dos outros! Que novidade nos irá revelar o Censo de 2011? Não deverão ser nada boas! Vamos lá ver se o FBI, perdão o FMI, não vai querer acabar com este nosso Concelho. Ao que isto chegou! Referi anteriormente o nosso Grupo de Futebol 1º de Dezembro: que saudades dos homens de 1640...