sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Dois calvários nas Cortes Pereiras

O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa – Verbo, 2001, na entrada CALVÁRIO, tem como quinta explicação Region. (Alg.) Pequeno cruzeiro de pedra ou de ferro que assinala no campo o lugar onde morreu alguém.O Dicionário do Falar Algarvio, de Eduardo Brazão Gonçalves, 2ª Edição aumentada, 1996, não deixa igualmente de o incluir, como próprio do falar algarvio.

Eu penso que estes singelos cruzeiros se espalham por todo o país com designações diferentes havendo naturalmente zonas onde o número é maior e hipoteticamente outras em que não existirão.

Não conheço a existência de algum na nossa freguesia natal e nos trabalhos que conheço nunca vi o assunto tratado com amplidão.

Julgo que a primeira pessoa que me falou num calvário, neste sentido, foi há cerca de quarenta anos na vila de Alcoutim e isto ao tentar explicar-me a origem da casa que habitava e em que se incluía na estória o assassinato de um capitão (de ordenanças), facto atestado com a elevação de um calvário nas proximidades de Afonso Vicente.

O contacto mais directo com a zona norte da freguesia de Alcoutim, nestes últimos vinte anos, foi-me trazendo a existência de mais casos, todos ou quase todos com uma estória, mais ou menos sucinta a acompanhá-los.

De alguns, de material, nada resta, a voragem do tempo e dos homens tudo levou, ficou a estória que já poucos conhecem e naturalmente deturpada com o decorrer dos anos; outros, ainda existem, ou por serem mais novos, por terem sido conservados durante alguns anos, ou porque não foram vandalizados, ainda que hoje, a grande maioria, para não dizer a totalidade, das gentes da zona os respeitem.
A erecção de um calvário tinha a ver com as circunstâncias consideradas não normais da morte e que tinha causado impacto entre a população. Daí, todos terem uma estória mais ou menos dramática atrás deles e hoje muito pouco conhecida.

Só conhecemos a tradição oral e o mais que poderíamos obter, pensamos, seria o assento de óbito que poderia indicar a causa da morte, obtendo-se assim outros dados importantes como o nome ou sua confirmação, a idade, o estado, a residência, a filiação e outros.



Iremos agora referir o que obtivemos sobre o desaparecido Calvário do Poço da Pia.

Situava-se nas proximidades deste poço público, localizado no Monte do Poço, o maior aglomerado populacional das Cortes Pereiras.

Em meados do século XIX vivia uma jovem, no Monte de Cima que se enamorou de um moço, namoro que os pais dela muito contestavam, de tal maneira que, pretendendo com ele juntar-se, uma tia a chamou para sua casa a fim de lhe organizar o casamento, como veio a acontecer.

Nem assim os pais mudaram de posição, pelo contrário, as represálias continuaram com mais vigor. Estava em causa como era próprio da época, os teres e haveres, além, segundo dizem, do comportamento do rapaz, um pouco leviano.
Dizia-se então das Cortes Pereiras, comentando o facto:

Mana Maria Francisca
Das Cortes é o raminho
Teve que sair de casa
Para casar com o Fidalguinho (1)

Do casal vieram a nascer cinco filhos, quatro raparigas e um rapaz.

As dificuldades económicas do casal agravaram-se, o relacionamento entre os cônjuges não seria o melhor pelo que, Maria Francisca resolveu pôr termo à vida afogando-se no poço da pia. (2)

Foi esta morte que deu origem ao hoje desaparecido calvário, encimado por cruz de ferro e que se situava perto deste poço, como não podia deixar de ser já que eles se destinam a marcar o lugar onde alguém morreu.

Consta que Maria Francisca era neta de um Manuel Francisco Rosa. (3)

Calvário da Godinha

Outro cruzeiro erigido nos princípios do século passado e que ainda se encontra de pé, situa-se no sítio rústico denominado Godinha que se situa entre as Cortes Pereiras e a Lourinhã. Quem tomar o caminho que passa junto ao Monte do Sol, encontrá-lo-á à direita, pouco afastado do mesmo. (4)

Tem este a circunstância de assinalar a morte do único filho de Maria Francisca, falecida por afogamento no poço da pia e que acabámos de referir.

A vítima, de que não me souberam dizer o nome, tinha ido pastar uns bois para as margens do rio, onde havia bons pastos e por lá permaneceu alguns dias. Levava consigo entre outras coisas uma almotolia de folha que lhe permitia o tempero de alguma comida.

Regressando a casa, com os bois, é apanhado por forte e inesperada trovoada e fulminado por um raio que igualmente “furou” a almotolia.

A vítima, que teria cerca de trinta anos, era solteira.

A família levantou em sua memória um calvário, com cruz de ferro e que enquanto a sua irmã Luísa foi viva e pode, cuidava da sua conservação, caiando-o principalmente.
A almotolia, símbolo funesto do acontecido foi guardada durante muitos anos pela irmã Luísa que ao ouvir uma trovoada, metia-se na cama e tapava-se com quantas mantas podia. Sofreu por isso um trauma com o acontecimento.
Aqui fica a singela estória deste calvário. (5)

NOTAS

(1) A designação “fidalguinho” tem a ver com o nome próprio e com a maneira de ser.
(2) O fundamental da estória foi-nos contado por uma bisneta da Maria Francisca, das Cortes Pereiras, hoje com oitenta e dois anos e que sempre ouviu contar todo este enredo, que acabou em tragédia, a sua mãe e a outros familiares.
(3) Tive igualmente informações de Manuel Joaquim dos Santos, residente em Afonso Vicente.

(4) Foi Manuel Joaquim dos Santos, de Afonso Vicente que nos deu a conhecer a existência deste calvário e que nos contou a razão da sua existência.
(5) A identificação familiar da vítima foi-nos dada por uma sobrinha-neta, neta de sua irmã Luísa, hoje com oitenta e dois anos.

(Publicado no Jornal do Baixo Guadiana, nº 101, de Setembro de 2008)