ACHEGAS PARA MELHOR CONHECER ESTE MÉDICO DE ALCOUTIM
Escreve
Gaspar Santos
Lembro-me perfeitamente do dia da morte do Dr. Cunha. Tinha então 9 anos. Os meus amigos e eu ficamos muito tristes quando soubemos do desenlace fatal, que as crianças não compreendem nem aceitam. Nessa tarde estivemos na rua a aguardar notícias pacientemente, preocupados mas esperançados na sua cura.
Embora este médico já estivesse reformado havia vários anos, era muito estimado pelo seu bom trato e pelas actividades culturais e de entretenimento que vinha criando e proporcionando sobretudo no teatro. Nesta arte “tocava” quase todos os “instrumentos”: escrevia os textos, encenava, desenhava magistralmente os cenários etc. Muitos ditos das suas récitas teatrais perduraram muito para além da sua morte e, alguns foram mesmo utilizados em récitas levadas à cena depois do seu falecimento.
Fora sempre uma pessoa muito calma, até na sua fala arrastada com grande sotaque madeirense, amável e disponível.
Sobre as suas competências como clínico, dada então a minha tenra idade, pouco posso testemunhar. Somente por ouvir dizer. Foi muito hábil na ajuda a parturientes. A maior parte do seu exercício clínico ocorreu quando ainda não se tinha dado a “revolução” química na medicina. Recorria com competência a medicina com base em ervas e chás; um ou outro medicamento manipulado, revulsivos, banhos e pensos quentes e frios, e outros agentes físicos, sangrias, purgantes, dieta, etc.
Constou alguns anos depois, que a farmácia não encarou muito bem o processo de sucessão do Dr. Cunha devido à radical alteração de receituário, com alguns medicamentos a ficarem como monos de armazém.
A minha família mais próxima está muito ligada à vida e obra do Dr. Cunha. Gratos como seus pacientes, mas também por estima e amizade e, sobretudo, por apreciarmos a grandeza de alma deste médico na ultrapassagem de uma situação dramática que nos atingiu. Meu Pai viu-se em 1930 envolvido sem querer no “conflito” entre o Dr. Cunha quase a atingir o limite de idade e um novo médico, recém formado que na Corte Velha, concelho de Castro Marim já dava consultas e fazia tratamentos gratuitos subsidiado pelo Pai. Este médico até tinha sido já abordado por gente influente de Alcoutim para vir para aqui trabalhar.
Meu Pai adoeceu com uma situação muito grave de apendicite complicada. O Dr. Cunha tratou-o o melhor que pode e, após ter esgotado o saber e os meios de que dispunha, disse: vão lá chamar o meu colega; ele saiu agora da Universidade e é capaz de trazer outros conhecimentos e métodos. E de facto, assim foi o primeiro doente grave que o Dr. Dias tratou e curou na Vila de Alcoutim.
O Dr. Dias, seria nomeado em 1932 para um segundo partido médico municipal e viria mais tarde a ser o sucessor do Dr. Cunha como único médico (municipal e subdelegado de saúde) de Alcoutim em 1934 após a reforma deste. Tenho conhecimento de que os dois médicos colaboraram e foram amigos até ao fim da vida do Dr. Cunha.
Já depois de reformado o Dr. Cunha desenhou e orientou o meu Pai na construção do meu cavalo de madeira com um estrado/balancé que ao cavalgá-lo fez a minha delícia e a de muitos dos meus amigos e até dos meus filhos.
(O "cavalo" montado por mim com 4 anos)
Também não me esqueço de ter visto no princípio dos anos 40, os dois médicos Dr. Cunha e Dr. Dias, no meu quintal a orientarem o tratamento e o penso que o meu Pai fazia a uma égua doente com um tumor ou quisto (era uma chaga profunda entre as patas da frente) de que se curou.
Mas a nossa amizade e estima não se ficou apenas pelo Dr. Cunha. Estendeu-se também à sua família. Todos os anos na época dos “figos de tuneira” a minha Mãe mandava um presente deles à Senhora D. Domingas Cunha a viúva do Dr. Cunha. Além de gostar muito destes figos, eles representavam também muito de afectivo, pois provinham do Areeiro, uma propriedade que fora sua e que o Dr. Cunha vendeu ao meu tio Gaspar quando voltou para a Madeira em 1925.
Nessa altura vendeu também aos meus Pais umas peças de mobiliário das quais algumas ainda existem: uma secretária de madeira que está em poder da minha irmã Cremilde e um guarda loiças que eu conservo com todo o carinho.
Com cerca dos meus 12 anos as filhas do Dr. Cunha, a professora Clarisse e sua irmã Conceição entregaram-me um enorme e espesso volume para eu ler. Esse livro era nada mais nada menos que os Lusíadas em papel muito encorpado e com a ortografia que o Camões usara. Eu fiz questão de o ler até ao fim com toda a atenção. A D. Clarisse Cunha era Regente Escolar muito conceituada na Escola Feminina de Alcoutim. Assisti a algumas aulas suas sempre que havia impedimento do Prof. Mendes Amaral.
Dos outros filhos do Dr. Cunha conheci bem o Luís Cunha de quem fui muito amigo. Na sua juventude proporcionou-me muitos passeios no quadro da bicicleta e, ofereceu-me um triciclo de madeira que ele próprio construiu. Voltei a privar com ele após o seu regresso de Moçambique, onde tinha exercido serviço na Administração Colonial.
Aceitou então ser Presidente da Câmara de Alcoutim, cargo que não suportou durante muito tempo e demitiu-se por falta de condições para trabalhar. Quando regressou de África Luís Cunha comprou o Areeiro que assim voltou à posse da família.
Também privei de perto com a filha Berta, esposa do senhor Leopoldo o encarregado do Grémio da Lavoura onde eu iniciei a minha vida profissional.
Não tenho nenhuma recordação de ter visto os seus filhos Artur Cunha e José Cunha, que sendo dos mais velhos cedo saíram de Alcoutim. Sei que o Artur Cunha era Técnico de Engenharia em Aveiro. E que era dirigente do Clube Galitos de Aveiro quando os seus remadores atingiram brilhantemente as meias-finais nos Jogos Olímpicos: de Londres (1948) e Helsínquia (1952) na modalidade de Shell 8+ (oito com timoneiro). Ficamos muito satisfeitos como é natural e o Grupo Desportivo de Alcoutim enviou telegramas de felicitações a este nosso conterrâneo.
Aqui fica a minha homenagem a um homem a quem Alcoutim muito ficou a dever e a sua magnífica família de Alcoutenejos de verdade.
G. S.
2008-11-04