Pequena nota
O "post" de hoje do TEMA, Ecos da Imprensa, é dedicado ao nosso visitante/leitor, A.C.P. que teve a amabilidade de me enviar por "e-mail" algumas considerações sobre o ALCOUTIM LIVRE e ao mesmo tempo que gostaria que eu escrevesse alguma coisa sobre o “monte” de Alcaria Queimada.
Naturalmente respondi às suas considerações, informando que já tinha escrito algo sobre esse monte, artigo que iria incluir brevemente em Ecos da Imprensa, o que hoje vai acontecer, esperando que ele lhe dê algumas “novidades".
O artigo quando foi publicado no Magazine do Jornal do Algarve só foi ilustrado com o desenho de nossa autoria que igualmente se publica. Além disso, juntamos hoje algumas fotografias.
Posso informar o leitor que já tendo passado uns bons anos, possuo mais elementos que tenciono juntar aos já dados a público, quando me for possível e oportuno.
Mais uma vez agradeço as suas palavras e o interesse manifestado.
JV
(PUBLICADO NO JORNAL DO ALGARVE DE 26 DE JULHO DE 1990 – MAGAZINE)
[A Capela de São Bento de Alcaria Queimada. Desenho de JV, 1990]
Desta vez, além de sairmos da vila de Alcoutim e aproveitando o Abril primaveril, fomos “descobrir” a única capela que não conhecíamos no concelho.
Rodando pela estrada nacional nº 124, encontrámos a placa indicativa de Alcaria Cova e seguimos a indicação, o que equivale a dizer que utilizámos a estrada municipal nº 508.
A manhã estava agradável, a nosso lado um reformado e uma jovem da área do jornalismo. Ainda que naturais do concelho, nada conheciam daquelas bandas.
A paisagem é a habitual do concelho: cerros atrás de cerros, estevais espessos, de onde em onde uma courela limpa, normalmente com amendoeiras.
Atravessámos a Ribeira da Foupana por ponte de quatro pilares, deixando assim a freguesia do Pereiro para entrarmos na de Vaqueiros.
A estrada agora é de macadame sem qualquer sinalização, pelo menos a nível toponímico. Vale-nos na circunstância o mapa do concelho que nos acompanha.
Cortámos à direita e pouco depois aparece-nos ao longe, uma pequena povoação onde se destaca um pequenino templo. Íamos chegar a Alcaria Queimada, o “monte” que procurávamos. Desde que deixámos a estrada nacional, não nos cruzámos com nenhum veículo automóvel e vimos dois ou três pastores. Foi tudo.
A pequena povoação tem presentemente catorze fogos habitados com cerca de quarenta habitantes. Em idade escolar, são sete, dois na primária, três na telescola e dois na secundária.
Em 1955 possuía duzentos e cinco moradores, segundo nos informaram.
Desenvolve-se pela encosta de uma pequena elevação, partindo do ponto de desenvolvimento que terá sido a pequena capelinha situada à entrada, junto a amplo largo, onde se encontram também o lavadouro público e o fontanário.
É airosa a povoação, onde o branco da cal impera (o que não é vulgar nesta região), e lhe dá uma nota agradável.
Os campos circunvizinhos ainda se encontram limpos de mato, estão semeados ou de pousio e alguns arborizados com amendoeiras.
[Vista Geral do Monte de Alcaria Queimada, Foto JV, 1992]
Alcaria é topónimo vulgaríssimo no Baixo-Alentejo e Alto Algarve e de origem Árabe – Al caria, que significa A aldeia. Na maior parte dos casos, está associado, para destrinça de outras. Queimada porquê? Teria sido alguma vez vítima de incêndio, natural ou propositado? É possível.
Este povo, além da agricultura e pastorícia, suas actividades fundamentais, teve outra, a de mineiro.
Da mina de Alcaria Queimada, foram concessionários, Antoine e Leroy. (1)
Esta mina de cobre foi registada em 2 de Outubro de 1859 e mais tarde (15.01.1873) também o foi por D. João Carvalho Diaz, cidadão espanhol.
Servida hoje por fontanários espalhados pela aldeia, passou bastantes problemas com o fornecimento do precioso líquido.
Na sessão da Câmara de 9 de Setembro de 1876, foi lido um requerimento dos habitantes do monte de Alcaria Queimada no qual fazendo ver a necessidade absoluta que têm de água para beber e tendo de abrir um poço novo, pedem que a Câmara concorra para a dita obra com vinte mil réis.
Depois de discutida largamente esta pretensão, a Câmara acordou em conceder um subsídio de seis mil réis, verba que calculam ser a despesa da mão do mestre e da cal, devendo tudo o resto correr por conta dos habitantes. (2)
Em 6 de Agosto de 1931 a Câmara resolve conceder quinhentos escudos de subsídio para o arranjo do poço.
Alguns alcarienses desempenharam funções de relevância a nível local. Assim, em 1850/51, Lourenço Cavaco fez parte da Junta de Paróquia de Vaqueiros; o mesmo e José Teixeira, eram em 1855 os maiores contribuintes da freguesia. Em 1858, o referido José Teixeira fazia parte do quadro dos vogais do conselho municipal e era Juiz eleito substituto. (3)
Em 1771 o Capitão Manuel Henriques, deste “monte” fez o seu manifesto de gado na Câmara de Alcoutim, nalgumas dezenas de cabeças com predomínio do gado caprino. Tudo indica que na altura desempenhasse as funções de Presidente da Câmara., visto ser ele que rubrica todas as folhas ainda existentes do livro.
Chegou a altura de falarmos na pequena capela que tem por orago, São Bento.
De planta rectangular, tem 5m X 8. Solo de mosaico e tecto de três panos. Quatro bancos compridos. Há missa ao 4º sábado de cada mês.
Fachada de empena de bico com armação de argamassa para suporte do pequeno sino. Sobre a porta rectangular, um pequeno óculo circular. A porta é debruada a azulejos brancos que sobre a verga se elevam em forma de cruz.
No bico da fachada, cruz de ferro forjado com algum interesse artístico. Anexa ao corpo da capela a sacristia e “confraria”, onde se lobriga um andor.
O adro é amplo e todo murado, destacando-se frente à porta um cruzeiro. A base de argamassa é cúbica, encimada por pirâmide quadrangular em cujo vértice se situa uma cruz trilobada de mármore.
O cruzeiro indica que o terreno onde está colocado é sagrado e pertence à capela. Funciona como um marco de propriedade.
O retábulo da ermida é datado de 1756/7 e foi adquirido por 10$000 réis. (4)
[A imagem do Senhor São Bento. Foto JV.]
Quanto à imagem de São Bento, Bispo, e de madeira pintada, datada de 1749/50, sendo considerada um exemplar de boa qualidade e em razoável estado de conservação.
Apresenta um báculo (símbolo do poder pastoral conferido aos bispos na sua sagração) na mão direita e um cálice na esquerda.
Além da imagem do padroeiro, o altar conta com um Cristo crucificado sobre cruz de madeira, em razoável estado de conservação sendo datado do século XIX. (5)
Sabe-se que o telhado da capelinha foi reparado em 1935 e encontramos várias inscrições que atestam arranjos mais ou menos recentes, o último dos quais em 1988, que incluiu a feitura nas proximidades, de um palco de alvenaria onde actua um conjunto musical no dia da festa.
Encontrando-se já electrificada, esse facto criou alguns problemas de ordem económica e o palco constituiu um investimento para fazer face às despesas.
Em 1799, das doze confrarias então existentes no concelho, a de São Bento de Alcaria Queimada era a segunda maior em saldo apresentado, só superada pela de Nª Sª da Conceição, na vila.
Estes saldos ficaram cativos até novas ordens, segundo ordem do Príncipe Regente, D. João, transmitida ao escrivão da Câmara, José Carlos de Freitas Azevedo.
Para o efeito, foi nomeado fiel depositário, Pedro José dos Reis. (6)
Também sabemos que em sessão municipal de 9 de Junho de 1866, foi apresentado um requerimento da Junta de Paróquia de Vaqueiros pedindo à Câmara que lhe autorizasse, por via de postura, o lançamento de uma derrama de 60 mil réis para com esta quantia mandar fazer o tecto e retocar a imagem do Senhor São Bento que “se achão num verdadeiro estado de ruína”. A Câmara, depois de ouvir o vereador da freguesia, deferiu o pedido.
A Capela de S. Bento de Alcaria Queimada e a de Santo António na vila, são as únicas do concelho de Alcoutim que não aparecem referidas nas visitações efectuada pela Ordem Militar de Santiago, de 1518 a 1565 (7), penso que por ainda não existirem.
A Romaria ao S. Bento é secular, reunindo o povo das redondezas e mesmo de terras distantes, a dezenas de quilómetros.
Esta festa profano-religiosa tem sofrido naturalmente as transformações do tempo, procurando adaptar-se e mantendo o fundamental.
Começa no dia 9 de Agosto e termina no dia seguinte.
Antigamente, e ouvimo-lo aos romeiros de então, partiam de manhã bem cedo para chegarem de noite (isto em relação à freguesia de Alcoutim) pois o caminho era difícil e percorrido de burro, quando não a pé.
[O altar da Capela de S. Bento. Foto de JV.]
Quem sofresse de dores de cabeça, metia-a três vezes num buraco do altar e com isso ficava livre desse flagelo, por uma temporada! O número de vezes acaba por ser variável, dependendo da fé de cada um.
As promessas eram pagas com pão cozido, de formato da parte do corpo que tinha sido curada pelo santo milagreiro.
Coutou-nos há vinte e três anos uma octogenária da freguesia de Alcoutim que tinha ido ao São Bento pagar uma promessa, oferecendo um bácoro pois a porca, que esteve doente, não tinha morrido.
Entretanto, as figuras de cera começaram a substituir as de pão mas ainda há quem atribua mais rigor às primeiras.
O pagador de promessas ao entrar na capela, dirige-se ao altar onde faz as suas orações de agradecimento pela graça concedida e entrega a figura de cera que consequentemente entra na posse do Santo, o que é o mesmo que dizer, na “confraria ou irmandade”.
A “irmandade ou confraria”, qualquer dos nomes, não é identificado pelos actuais responsáveis, é dirigida presentemente por três pessoas e uma tem a seu cargo “ficar à mesa das promessas”.
Dentro da própria capela se coloca pequena mesa apetrechada de figuras de cera que são vendidas ao mesmo preço, cuja taxa é de 140$00, fixada pelos responsáveis.
O abastecimento da mesa, quando necessário, faz-se naturalmente através do altar o que significa que a mesma peça pode ser vendida as vezes que forem necessárias.
Não há eleições para responsáveis, segundo nos informa um dos actuais – tem passado de pais para filhos – já o meu avô desempenhava este lugar, diz-nos o nosso interlocutor.
Antigamente os romeiros iam chegando pela noite fora, descansando das suas caminhadas pelo adro e terreiro, já que o tempo dá para isso.
Em 1980/81 veio uma crente de Espanha aqui pagar uma promessa. A sua progenitora era dos lados da serra de Serpa e foi ela que lhe referiu as qualidades “milagreiras” do São Bento de Alcaria Queimada.
O segundo dia é destinado ao folguedo, cantando-se e dançando-se. Em tempos que já lá vão, dançava-se ao toque da gaitinha de beiços, hoje actua um conjunto musical. É assim que a “irmandade” vai arranjando fundos para a sua manutenção, queixando-se do custo da energia eléctrica, cuja taxa mínima é elevada para os seus recursos.
A capelinha está impecavelmente caiada tal como o adro e tudo o que lhe diga respeito e a limpeza ali, não é palavra vã.
Estas capelinhas, espalhadas por todo o País e por vezes em locais quase inóspitos, têm quase sempre uma lenda para explicar a sua existência e a de São Bento não falhou.
Não chegou aos nossos dias com todos os seus elementos de ligação, que se foram diluindo no decorrer dos tempos, mas chegou.
A primitiva capela (o São Bento Velho), situava-se junto da ribeira da Foupana que passa a cerca de quinhentos metros de Alcaria Queimada, local onde, segundo os nossos narradores, ainda se notam vestígios como pedras “quadrejadas” e telhas.
Por sofrer as inundações da ribeira ou por qualquer outro motivo, o santo não gostava de lá estar e um pastor de Alcaria Cova encontrou-o na ribeira quando pastava os seus gados. Admirado, ao regressar ao monte, contou o sucedido mas para sua mágoa ninguém acreditou em tal.
Tempos depois, o encontro repetiu-se mas desta vez o pastor, para não lhe chamarem mentiroso, meteu-o numa saca e pôs-se a caminho do monte. Quando lá chegou, qual não foi o seu espanto pois a saca nada continha!
Não ficou por aqui a “estória” pois no próximo encontro cortou-lhe dois dedos que fechou bem na mão a fim de provar o que dizia.
Não me souberam explicar como veio para Alcaria Queimada, mas chamaram-me a atenção para o facto (vá ver) do Senhor São Bento ter dois dedos “cortos”.
Aqui tendes o que nos foi possível juntar sobre seta singela e interessante capelinha do nordeste algarvio, freguesia de Vaqueiros, concelho de Alcoutim.
NOTAS
(1)Dicionário Corográfico de Portugal, Américo Costa, Ed. 1968.
(2)Livro de Actas da Câmara Municipal de Alcoutim, de 2 de Janeiro de 1876 a27 de Abril de 1882.
(3)Livro de Actas da Câmara Municipal de Alcoutim, de 2 de Janeiro de 1850 a 4 de Fevereiro de 1858.
(4)A Escultura de Madeira no concelho de Alcoutim no século XVI ao século XIX Francisco Lameira e Manuel Rodrigues, Faro, 1985.
(5)Idem, ibidem.
(6)Livro de Contas da Real Confraria de Nª Sª da Conceição, iniciado em 1785, págs. 15, 18 e 20 v.
(7)Visitações da Ordem de Santiago no Sotavento Algarvio, Hugo Cavaco, CMVRSA, 1987