sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

A Escola ... e o que vem a reboque (1ªParte)

Pequena nota

Permitam-me os meus visitantes/leitores mais esta pequena nota que eu penso tem inteira justificação.
Sei quem esteja esperando mais colaboração deste nosso Colega de profissão e Amigo que nos tem brindado com a sua prosa e poesia de reconhecido valor e que, para quem se interessa por Alcoutim tem esse adicionante.
Não podemos esquecer que o descrito tem por cenário Alcoutim e há mais de setenta anos!
Quem nos podia fornecer estes quadros com tão belas pinceladas? Possivelmente só o José Temudo que está legando aos vindouros quadros demonstrativos do passado alcoutenejo.
Atendendo a que o artigo se tornava um pouco extenso, tomámos a liberdade de o dividir em duas partes, afirmando que se a primeira tem todo o interesse, a segunda apresenta dois factos bem marcantes do passado alcoutenejo.


JV


Escreve

José Temudo


Estava a quatro meses de completar oito anos quando entrei para a escola.

São poucas e imprecisas as recordações que guardo do início da minha vida escolar.

Por mais que me esforce, do saco roto da memória, só consigo tirar meia dúzia de insignificantes lembranças. Antes de qualquer outra, a do professor, o snr. Trindade, de quem o meu Pai dizia ser um homem culto, inteligente, escritor e poeta. E um homem bom!

[As antigas escolas]
Desnecessário será dizer que eu não tinha, então, condições para fazer uma tal apreciação.

Recordo-o, à janela da Escola, baixote, grosso de cintura, lunetas encavalitadas no nariz, com o livro de leitura na mão, esquecido do ditado que iniciara, olhando, enamorado, o rio, os barcos, as margens, S. Lúcar! Recordo-o, ainda, sentado à secretária e nós à sua volta, em semicírculo, aos sábados, na revisão da matéria dada durante a semana. Umas vezes, era ele a fazer as perguntas; outras vezes, cabia aos alunos interrogarem-se entre si. Quer num caso, quer no outro, uma resposta errada tinha sempre o mesmo castigo: uma palmatoada, mais ou menos forte, conforme era aplicada pelo professor ou por um colega. Às vezes, doíam mesmo. Tanto assim que, um dia, num acesso de raiva, sobrevinda, certamente, a uma palmatoada menos caridosa, roubei a palmatória e fui oferecê-la, generosamente, à Dona Arminda, a professora da Escola das raparigas.

[O Professor Trindade]
Como é de presumir, a palmatória foi devolvida ao meu professor, acompanhada da informação do nome do benfeitor que a tinha doado. Resultado: se me tinha doído antes, mais me ficou a doer depois. E o “sacaninha” aprendeu a lição: “não queiras para os outros, aquilo que não queres para ti!”

Se as recordações são poucas, as saudades são nenhumas. Aquele primeiro ano escolar foi para mim um tempo penoso, só suportável porque os meus companheiros de brincadeira também lá estavam. Aprendi a ler, a escrever e a contar, não muito bem e sem entusiasmo. S Escola roubava-me a liberdade e não acrescentava nada ao que, naquele tempo, me interessava: o peão, o berlinde, a bilharda, como eu os jogava bem!, o castelo, o campo, o rio, as armadilhas aos pássaros!

Alcoutim não tinha biblioteca, não tinha uma só livraria, os jornais ou não chegavam ou chegavam atrasados, jamais vi um livro ou outra qualquer publicação para crianças, não obstante a quantidade de livros que havia em casa de meus pais, ambos amantes da leitura. Para quê aprender a ler e a escrever? Ainda se houvesse em Alcoutim um cinema que passasse filmes de aventuras, legendados! Mas, não; os espectáculos que os alcoutenejos viam, e muito esporadicamente, eram realizados ao ar livre, no terreiro, em frente às Escolas, para entendimento dos quais eu não precisava de saber ler.

Os “artistas”, saltimbancos ou “tiriteiros” (creio ser corruptela de titeriteiros), nome por que, julgo, eram conhecidos em Alcoutim, eram pouco mais do que pedintes. Vinham em pequenos grupos, geralmente, de três pessoas: um homem, uma mulher e uma menina. Com frequência, traziam consigo um cão, mais raramente, um macaco. Executavam números de ilusionismo, de malabarismo, de contorcionismo e de equilibrismo. O cão caminhava sobre as patas traseiras, e o macaco dava saltos mortais. Amiúde, o homem também vomitava fogo.

Os alcoutenejos divertiam-se com o espectáculo e, no fim, lá deixavam cair uns magros tostões no chapéu que a menina lhes estendia, desafiando a sua generosidade.

Antes de terminar esta evocação, quero acrescentar umas breves notas que julgo possam ter algum interesse.

A primeira respeita ao facto de não haver em Alcoutim um teatro, o que não obstava a que se realizassem, de quando em quando, pequenos espectáculos, que integravam cantigas, danças, declamação e representação de peças simples e não muito longas. Os “artistas” eram, na sua maioria, estudantes, em gozo de férias. Os ensaios das cantigas e das danças eram feitos em casa de D. Cecília Dias, que tinha piano e preparação musical. Os ensaios de declamação e de representação estavam a cargo do professor, snr. Trindade. Quem melhor do que um poeta o podia fazer?

[José Temudo em Alcoutim, antes de frequentar a escola]
A escolha e a confecção do roupeiro eram da responsabilidade de um grupo de senhoras, em que estava incluída a minha própria Mãe.

Estes espectáculos eram muito apreciados em Alcoutim e eram realizados numa casa que reunia as condições mínimas, ou nem essas, para o efeito. Como se diz, “quem não tem cão, caça com gato”.

Termino com uma confissão: sobre este agradável assunto, usando uma expressão em português de antanho, “eu falo de outiva”, por ouvir dizer, pois sobre ele não guardo memória “nadinha de nada”.

(continua)