terça-feira, 29 de dezembro de 2009
Sanlúcar visto do lado de Alcoutim
Escreve
Gaspar Santos
No blogue A Moura do Castelo Velho, Odília Guerreiro uma professora natural de Alcoutim que não esquece a sua terra escreve:
[Brasão de Sanlúcar]
Muitas das minhas recordações de infância e adolescência estão ligadas também a SANLUCAR del GUADIANA. Cresci convivendo com eles e tenho um carinho especial por este povo que é uma extensão do meu. A música de Espanha teve, desde sempre, muita influência em mim. Quando canto para o espelho, nunca o faço em português, que me perdoe o nosso cancioneiro! Nem consigo ficar quieta, ao som dumas SEVILHANAS!
Também eu partilho dessas recordações. De minha casa ouvia-se falar as pessoas de Sanlúcar quando falavam em voz mais alta. Sevilhanas, “flamenco”, passo dobles foram as músicas a que os nossos ouvidos se habituaram e, isso marcou-nos. Era frequente ouvir no Areeiro ou na Lourinhã um camponês no caminho da outra margem, montando uma besta e a cantar uma dessas toadas dolentes acompanhada ou não com viola.
Nesse tempo as duas localidades, aparentemente, estavam de costas voltadas. Por isso o nosso convívio não foi tão grande como veio a acontecer anos depois. Só podíamos ir a Sanlúcar pelas Festas de Nossa Senhora de La Rábida. E os Sanluquenhos vinham a Alcoutim só em Setembro por altura da Feira, ou a partir de 1948 às Festas de Alcoutim. As fronteiras guardadas de ambos os lados, só davam passagem a médicos, padres, à Guarda-fiscal, às autoridades administrativas, e a alguém com poderosas razões para convencer o comandante local da Guarda-fiscal.
Por isso, do nosso lado limitávamo-nos a observar o que se passava do outro. E quando se falava alto ouvia-se, como se ouvia a música ou a cantar.
Mesmo assim, com uma só visita anual nos habituámos a ver Sanlúcar mais avançado do que nós. Foi assim que durante as festas de Nª Sª de La Rábida tínhamos acesso a sabonetes, perfumes e lindas camisas de seda. Ou que comemos pela primeira vez frutas e legumes fora de época (alfaces e tomates) e conservadas em calda (pêssego, peras, pimentos morrones etc).
[Sta. Virgem de La Rabida]
No âmbito dessa Festa anual, os nossos vizinhos tinham sempre um gesto de simpatia, fazendo uma arruada em Alcoutim com a Banda de Música. Era sempre a banda da Casa Cuna (Casa Mãe) uma instituição que educava órfãos e crianças abandonadas. Muitas vezes em Alcoutim a garotada ao mesmo tempo que acompanhava a Banda e apreciava a sua música, tentava descortinar pela fisionomia parecenças com mulheres de Alcoutim que se dizia terem deixado filhos na roda. E que divertidos bailes os nossos vizinhos realizavam na noite dessa festa! Mas o padre passava por lá à meia-noite para recordar a hora às raparigas. Ficavam poucas, apenas as mais independentes ou menos devotas.
[Recordando o velho comércio. Foto GS, 2009]
Havia uma actividade comercial quiçá mais moderna e mais desenvolvida do que em Alcoutim. Entrando no cais de Sanlúcar encontrávamos em frente à esquerda o Bar Estrella (onde pela primeira vez provei cerveja, na primeira festa a que permitiram passagem a seguir à Guerra Civil), depois o Casino ou Cassino e, na rua principal íamos encontrando sucessivamente o Miguel Ferreira, o Domingos Montez e uma outra loja cujo nome não recordo. Nestas três últimas casas comerciais encontrávamos de tudo. Desde arreios para animais, cordas, ferramentas agrícolas, mercearia, pólvora e cartuchos para armas de fogo, perfumaria e artigos de drogaria, bem como para vestir. Muitas senhoras, quando era possível passar, iam a uma das duas cabeleireiras existentes em Sanlúcar, um serviço que ainda hoje Alcoutim não possui.
Da actividade económica sanluquenha saliento a indústria de carvão vegetal por vê-la anunciar nos cartazes das festas. E também a cestaria de cana. Observávamos uma intensa actividade agrícola nas várzeas e nas eiras, a criação de gado cavalar que aparecia solto e a pastar de dia e de noite nas encostas à volta de Sanlúcar, (a prado como eles dizem) e as cavalhadas durante a festa.
Mas antes da Guerra-civil (1936/39) Alcoutim participava da actividade comercial com um armazém/entreposto de ovos. O Senhor Francisco do Rosário comprava ovos no concelho de Alcoutim que eram exportados para as grandes cidades andaluzas de Sevilha e Huelva via Sanlúcar. Ele até dizia alguns anos depois de cessar esse negócio, que pagava mais à empregada do armazém do que recebia a sua mulher que era Professora do Ensino Primário.
Também nesse tempo, nos mercados de gado, de Alcoutim e Sanlúcar se negociavam animais. Os bois e os cavalos atravessavam o Guadiana a nado, enquanto os animais de mais pequeno porte viajavam de barco.
[Sanlúcar. Gado de trabalho. Foto JV, 1973]
Na Sanlúcar dos anos 40 e 50, havia um artesanato com um bom peso económico, a cestaria de cana. A atestá-lo vê-se ali hoje, e nós fotografámos, o monumento ao canastreiro. Havia grande consumo de canastras para o acondicionamento do pescado nos portos de Ayamonte e Huelva. Aproveitavam, para a sua manufactura, a matéria-prima dos canaviais que tão bem se dão nas várzeas banhadas pelo Guadiana.
Após serem colhidas, as canas eram atadas inteiras, em feixes reunidos formando uma jangada, que no rio a maré favorável se encarregava de trazer para Sanlúcar. Um homem viajava em cima dessa jangada para a guiar sem muito afastamento da sua margem.
Já no Século XV os portugueses tinham usado este método. Lançavam ao rio grandes troncos de sobro ou de azinho. Eles desciam com a maré até serem capturados antes de saírem a barra. Constituíam as proas e quilhas das caravelas depois de afeiçoados nos estaleiros de Santo António de Arenilha.
[Canastreiro. Foto GS, 2009]
Em Sanlúcar as canas eram peladas e cortadas longitudinalmente em delgadas tiras para a manufactura dos cestos. Mas antes de os cestos serem tecidos, as tiras de cana eram colocadas de molho no rio com uma pedra em cima, pois a cana, entretanto, secara tornando-se quebradiça e pouco domável. Demolhar as canas era uma tarefa de jovens sanluquenhas que iam em alegre grupo até ao cascalho de Sanlúcar ou em frente ao Castelo Velho. Assisti a grande galhofa e risinhos dessas jovens que reagiam assim, neste último cascalho, à aproximação a um nadador de Alcoutim que namorava uma delas.
No princípio dos anos 40 vimos aparecer em Sanlúcar os camiões Pegaso de fabrico espanhol. Um camião que veio a evoluir para um bom veículo e a ser um orgulho espanhol. Mas a sua tecnologia, como é natural, não esteve de princípio completamente dominada e, muitas vezes, avariavam em Sanlúcar e era necessário deslocar lá mecânicos para os desempanar.
[Cais de sanlúcar. Foto de JV, 1986]
Lembramo-nos também da construção do cais de Sanlúcar no início dos anos 40. É do tipo muralha. Nem os seus objectivos nem o local escolhido, que é pouco profundo, o projectavam para a atracação de grandes navios. Mas impressiona, por mostrar dois aspectos importantes. A sua imponência que o elevam à cota da baixa da vila; e lhe permite a operacionalidade em caso de grandes cheias. Para manobrar pequenas cargas em condições de marés normais dispõe de grua.
Hoje a travessia de barco entre Alcoutim e Sanlúcar custa apenas um euro, a qualquer hora do dia.
Não posso deixar sem registo a algazarra, que algumas vezes ouvimos. Ouvia-se “perro dañado” e de seguida via-se uma correria de homens, nos campos em frente, com a espingarda pronta a atirar, mobilizados para dar caça a um cão que punha em perigo as populações. O alarido parecia-nos grandioso e até algo a despropósito e por isso em Alcoutim já sabiam do que se tratava e num encolher de ombros diziam mais um cão raivoso… Provavelmente não se levava muito a sério, no outro lado, a vacina contra a raiva que Pasteur tinha descoberto já havia alguns anos.
Pequena nota
Mais um interessante texto que este colaborador nos oferece retratando pelo menos uma visão de mais de sessenta anos!
As coisas nem sempre foram iguais como nos pretende mostrar através da sua privilegiada memória, do seu olhar atento e da singeleza da sua escrita.
JV