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Uma segunda nota: disse que em Alcoutim não havia cinema. E não havia, mesmo.
Mas eu vi em Alcoutim uma sessão de cinema, a despeito de não haver luz eléctrica.
A sessão, levada a cabo por um exibidor ambulante, realizou-se num barracão ou celeiro velho que ficava no alto da Vila, a caminho da Igreja de Nossa Senhora da Conceição. Quando entrámos no improvisado “cinema”, a aparelhagem já estava montada: na parede frontal à porta de entrada, estava colocado o “écran”, um pouco para lá dela, no seu enfiamento com o “écran”, estava suspensa uma bicicleta sobre dois pilares, que julgo seriam secções de um tronco suficientemente largo para dar estabilidade ao conjunto. A máquina de projectar já estava montada sobre o guiador da bicicleta.
[O gerador da energia!]
Quando a sala ficou cheia, fecharam a porta, ficámos às escuras, o exibidor começou a pedalar de uma forma regular e as imagens foram aparecendo no “écran”, maravilhando todos quantos assistiam. Lembro-me de ter visto desenhos animados e de me ter divertido muito com eles. É possível que tenha passado um qualquer outro filme, mas dele não guardo qualquer memória.
Perguntar-me-ão: não havendo energia eléctrica, como funcionava a máquina de projectar? Desta forma: à medida que o homem pedalava, a roda pedaleira fazia rolar o filme à frente da objectiva e as imagens eram projectadas para o “écran” pela luz do farolim que o dínamo da bicicleta alimentava.
Terceira nota: na década de trinta do século passado, havia uma única estrada, em macadame, que, se bem me lembro, saía da Vila pelas “Portas de Mértola” e a ligava, segundo julgo, à freguesia do Pereiro.
Havia uma estrada... e um único automóvel! O dono chamava-se Xavier e morava já não sei em que freguesia. A espaços, vinha à Vila. À entrada, anunciava-se dando dois “apalpões” à buzina, exterior ao automóvel, e vinha estacionar no terreiro, em frente às Escolas.
[Este automóvel ainda que antigo, é bem mais novo]
A sua vinda era sempre um acontecimento que juntava uma pequena multidão de curiosos à volta do carro. E a própria escola não ficava indiferente ao acontecimento, imune à curiosidade que afectava muitos alcoutenejos. E o professor, o snr. Trindade, apercebendo-se que a nossa atenção também já não estava com ele, mas lá fora, de onde vinha o roncar do motor do carro, as vozes dos curiosos e uma ou outra buzinadela, acabava por nos conceder um pequeno intervalo que, por via de regra, se transformava num longo e divertido recreio.
Um ou outro de nós, mais atrevido, saltava para os estribos do carro, dava uns “apalpões” na buzina e safava-se, correndo, “enxotado” ou pelo snr. Xavier ou por alguém mais responsável, na ausência daquele.
Cavando no passado, duro, quase impenetrável, à força de não ser remexido há muito, muito tempo, encontramos uma qualquer recordação, um facto, uma relação pessoal, por vezes, um só momento, não mais do que isso, seja agradável, seja doloroso.
E basta demorarmo-nos um pouco sobre o “objecto” encontrado e logo, como por magia, vão surgindo outros, sem que, aparentemente, haja entre eles uma ligação racional ou afectiva.
Evocando o meu primeiro ano escolar, falei do snr. Trindade, o meu professor, de D. Arminda, a professora da Escola Feminina. Falei dos “tiriteiros”, das pequenas e leves peças representadas por estudantes, em gozo de férias, num simulacro de teatro, de uma sessão de cinema num barracão, do automóvel do snr. Xavier. E na cauda interessante desse cortejo de “perdidos e achados”, vem um lindo aparelho de rádio, de caixa de madeira envernizada, alimentado por bateria. O feliz e invejado dono daquela preciosidade, única em todo o concelho, era o snr. Quaresma, que o mandou vir já não sei de onde. Mas lembro-me, perfeitamente, do “acto da inauguração”, a que não faltaram as pessoas gradas de Alcoutim. E eu entre elas, acompanhando os meus Pais.
[Este modelo de telefonia é dos anos 40, por isso mais novo]
Com alguma teatralidade, o snr, Quaresma tirou o pano que envolvia o aparelho, mexeu nos botões, sintonizou uma estação, regulou o som e, milagre! passou a ouvir-se a voz de um homem a falar, já não sei sobre o quê. Mas não me esqueço de ter andado à volta do aparelho para ver onde estava o homem cuja voz estávamos a ouvir.
No dia seguinte, não se falava de outro assunto em Alcoutim. Havia os maravilhados e os que não acreditavam que se pudesse ouvir em Alcoutim a voz de um homem que falava a partir de Lisboa, por mais alto que ele falasse!
Não trocemos da ignorância dos descrentes que assim falavam, pois, nos dias que correm, ainda há quem ponha em dúvida que o homem tenha ido e voltado da Lua em 1969.
Agora, sim, uma última nota, esta de carácter “social”.
Falei, acima, de D. Cecília, a esposa do distinto médico dr. Dias. Minha mãe, visita habitual de sua casa, tinha uma grande admiração por ela, pela sua esmerada educação e pela sua cativante simpatia. Era em sua casa que as senhoras de Alcoutim se reuniam, para conviver, para bordar, tricotar os fazer malhas, para jogar ao loto, a tostão! Para beber uma chávena de chá, para comer uma fatia de bolo, que nunca faltava. Assisti a uma dessas reuniões, contrariado, é certo, mas assisti.
Vila do Conde, 20 de Outubro de 2009.
Nota final
Prezados visitantes/leitores:
Quando “comentei” a primeira parte do artigo, penso que não vos enganei. O “cinema”, o “carro” e a “telefonia” constituem para mim três peças bem significativas do passado alcoutenejo.
Muito agradeço ao José Temudo mais esta contribuição para o conhecimento do passado relativamente recente de Alcoutim, tanto pelo seu conteúdo como pela maneira como o aborda e descreve.
Será que ainda é possível vir mais alguma coisa? Não será fácil mas é possível.
Com uma abraço do
JV