quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
O pau da censura
Escreve
Gaspar Santos
Servia de banco. Foi para isso que ali foi colocado pelo Senhor Rosário. Estava encostado à parede, entre a porta do seu quintal e o início do edifício da velha cadeia. Do lado Sul da Praça, onde mais tarde, foi construído um edifício residencial com lojas por baixo. O quintal tinha oliveiras frondosas que davam ampla sombra. Era agradável estar ali sentado na parte da tarde quando a canícula mais apertava. O pau, um grosso tronco de eucalipto com cerca de 8 metros de comprimento e 60 cm de diâmetro. A superfície superior do tronco tornou-se polida e limpa de tanto ser surrada pelos traseiros. Em geral eram mais os homens que lá tomavam assento. As mulheres chegavam ao ponto de até evitar por ali passar, quanto mais se sentarem.
Começou com o propósito de constituir um apoio para repouso ou lazer das pessoas, mas estas quando se juntam falam. E essa fala acompanha e anima o “filme” da passagem de outras pessoas na sua frente.
Alguém depois, que até pode ter sido o mestre Carlos Sapateiro, muito a propósito, chamou-lhe Pau da Censura. Nada tinha a ver com a censura que o Estado Novo exercia. Constatava e comentava a realidade.
[A desparecida cadeia. Des. de JV. À esquerda situava-se o muro junto do qual se encontrava o pau.]
Nesse tempo não havia televisão. Escasseavam os programas de rádio. Raros os aparelhos para entretenimento. Os Jornais Nacionais chegavam um ou dois dias depois da sua publicação. Recorria-se ao “jornal local” que era de viva voz. As notícias locais eram faladas. E esse “jornal” não se editava só aqui. Outras edições havia no Poço da Figueiras e na Ribeira na lavagem da roupa.
O alcoutenejo não é mal intencionado na sua crítica social. É naturalmente intolerante para com os outros. Mas não é intriguista. Tem mesmo uma faceta interessante. Quando critica alguém, outros ouvem e podem continuar a cadeia de divulgação. Mas raro é aquele que vai dizer à parte criticada ou aos seus familiares o que o outro falou ou quem falou. O “diz-se” não é em curto-circuito.
No Pau da Censura as observações que se faziam eram muitas, mas quase inocentes. Tipo: “aquela tem os tacões muito altos, nem pode andar!” Ou... tem uma saia verde … vai à Sporting! Mas também se entrava em pormenores mais íntimos: esta fulana namora fulano…
Um tesoureiro de finanças de então, de nome Ferreira, passava às vezes muito tempo lá sentado nas horas de serviço. O pau ficava mesmo em frente da janela da Tesouraria. Quando uma pessoa se aproximava ele ia a correr atendê-la.
O Pau da Censura acabou, sendo removido, quando foram construídos os actuais edifícios da Praça. A substituí-lo passou a estar um ou dois bancos, encostados ao edifício do lado poente da praça, agora com mesas e cadeiras onde se pode tomar um refresco mas não me consta que tenha as antigas funções.
Pequena nota
Já não conheci o “pau da censura” ainda que o refira no meu trabalho,” Alcoutim, Capital do Nordeste Algarvio...” a pág. 312, nos seguintes termos:- “Não conheci, mas ainda me chegou aos ouvidos a fama do «tronco da má língua» que se estendia junto ao muro do quintal da antiga cadeia, tudo já desaparecido.
O tesoureiro Ferreira, mais propriamente Vitoriano César Ferreira, exerceu funções em Alcoutim de 1943/47 tendo-se transferido para Alfândega da Fé, seu concelho natal e onde se reformou.
Vinte e anos depois, quando cheguei a Alcoutim, ainda me lembro de ouvir falar nele como guarda-redes da equipa local, futuro Grupo Desportivo de Alcoutim.