terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Alcoutim ficou mais pobre

(PUBLICADO NO JORNAL DO ALGARVE DE 5 DE NOVEMBRO DE 1987)

Pequena nota
Este texto foi escrito e publicado há vinte e dois anos, tantos quantos faz de falecido o poeta-músico João Madeira, vulgo João Ricardo.
Já ninguém da sua família vive em Alcoutim.
Este texto serve para o recordar aos que o conheceram e para o dar a conhecer principalmente aos jovens.

JV

Em duas oportunidades, referi-me nestas páginas a duas figuras ligadas à pequena vila raiana. Diz o povoe com razão, que não há duas sem três.

Hoje, referirei, se isso me for permitido, um poeta popular que nos acaba de deixar aos 82 anos.

Penso que a todos nós toca, mais tarde ou mais cedo, a acção da musa e serão poucos os que nunca fizeram pelo menos uma quadra! Mas poucos passamos disto, pois a inspiração momentânea, depressa desaparece.

Uns tantos, não conseguem a “libertação” e quanto mais poesia compõem, mais necessidade sentem de o fazer. Uns, fazem-no com a técnica que a sua erudição permite, outros, nem sequer sabem escrever, mas a memória regista. Todos são poetas, neste leque de que apresentámos as guardas e cada qual terça as armas que tem.

Acaba de se finar na vila de Alcoutim o poeta-barbeiro, João Madeira, que todos no concelho conheceram por mestre João Ricardo, João filho do Ricardo a que o tempos, naturalmente, suprimiram primeiro o “filho” e depois o “do”.

Natural de Cachopo, chegou a esta vila por volta da década de trinta, trazido pelo nome do clínico, Dr. João Francisco Dias, que veio consultar para resolução de problemas de saúde. Entusiasmado pelo médico, acabou por ficar e a vila, além de passar a dispor de mais um barbeiro, ganhou um músico e um poeta. Tocava clarinete, requinta e saxofone.

Há volta de trinta anos, contando com a juventude da vila, organizou um rancho que actuou nos tradicionais festejos anuais. Além de ensaiador, fez a letra e compôs a música daquilo a que chamou “Marcha da Vila de Alcoutim”, que alguns recordarão com saudade.

[João Madeira aos 80 anos. Foto JV]

Da letra, respigámos o seguinte:

Alcoutim é esta vila,
Que fica no meio da serra,
Num canto de Portugal,
Tem o Guadiana a seus pés
Vê bem crescer as marés,
Do rio internacional.

Alcoutim é pitoresca,
Corre por ela aragem fresca,
Da brisa que vem do mar,
Essa brisa pura e bela,
Faz andar barcos à vela,
Pelo rio a navegar.

Os problemas da vila estavam sempre na preocupação de João Ricardo, que os analisava em “quadras” simples, ingénuas e por vezes mordazes.
Uma pequenina selecção é disso demonstrativa:

Alcoutim, terra velhinha
e nada tem aumentado
tem menos gente, coitadinha,
que no outro século passado.

Terra velha, desprezada
e há quem lhe chame bela
Por todos abandonada
e ninguém faz caso dela.
Só se lembram do dinheiro
que lhe dão no fim do mês
não se lembram cá da terra,
vão para a magana que os fez.

Andam-se vinte quilómetros
para ir às Cortes Pereiras
podendo apenas ser cinco,
vejam lá as asneiras.

A ponte e a estradas feitas,
darão vida a Alcoutim,
mas se não as começarem,
nunca chegarão ao fim.

Feitas antes de 74, alguns dos problemas tratados pelo poeta-barbeiro, estão hoje, felizmente, resolvidos, fazendo parte de um passado recente.

João Madeira não fazia poesia para publicar aqui ou ali, para divulgar a este ou àquele. João Madeira fazia poesia para se satisfazer a si próprio. A maioria, perdeu-se no caixote dos papéis, quando se fazia limpeza à barbearia.

Nos últimos anos e como sabia que apreciávamos o seu jeito, confidenciava-nos os seus trabalhos.

Sempre que íamos à vila, visitávamo-lo e nunca vínhamos de mãos a abanar. Nos últimos tempos desesperava-se com a dificuldade que tinha em escrever.

A morte, que a todos preocupa, inspirou-lhe as seguintes quadras, das últimas que compôs:

A morte é coisa daninha,
Que nos vem roubar a vida,
Quando vem, não se adivinha,
A hora da despedida.

Morre-se a comer e a cantar,
Outros morrem a dormir,
Mas quando ele chegar,
Todos ficam sem sentir.

Morre o pobre e morre o rico,
Morre tudo o que nasceu,
Não se vê, mas está escrito,
Todo o ser vivo morreu.

Morre o velho e o rapaz,
Morre a mulher e o menino,
Nem o mais rico é capaz,
De fugir ao seu destino.

Manhosa e sorrateira
É a traiçoeira morte
Chega a hora derradeira
Leva o fraco e leva o forte.

Ter saúde, é ser feliz,
Ser rico, é ter muita sorte,
Mas há um rifão que diz:
Ninguém se livra da morte.

Morrem de barriga cheia,
Morrem muitos em jejum
Medonha morte, é tão feia,
Que não deixa cá nenhum.

Morrem cheios de saúde,
E muitos a passear,
A morte ninguém ilude
Morrem quando ela chegar.

Morre o que está doente,
Morre o que tem felicidade,
Morrem tantos de repente,
Mesmo na flor da idade.

Com estas modestas palavras pretendemos ainda que com muita simplicidade, homenagear o poeta.

João Madeira repousa na vila que tento amou e a que dedicou muita da sua poesia.

Alcoutim perdeu o seu poeta!

Alcoutim ficou mais pobre!