domingo, 24 de janeiro de 2010

Menino de Alcoutim visita cidade grande

Pequena nota
Mais uma interessante história verídica e contada por um menino alcoutenense que com cerca de 5/6 anos sai do seu ninho para conhecer um Mundo diferente que acabou por fasciná-lo. Apesar de se terem passado setenta anos mantém na sua privilegiada memória o que na altura viu e sentiu.
JV






Escreve
Gaspar Santos






Minha Mãe e eu fomos a Beja em 1939. O convite era de meus tios que lá moravam. Era a primeira vez. Foi um deslumbramento sobretudo para os olhos. Tudo era novo para mim. Minha Mãe viajava muito preocupada. Tinha receio de que eu tivesse medo de entrar na camioneta e ficássemos a meio caminho em Mértola, sem ter programado uma decisão alternativa. É que eu, por ter medo, já recusara uma viagem ao Pereiro, à Feira de S. Marcos.

O deslumbramento começou logo na contemplação do Rio Guadiana e de suas margens. De tal maneira que ainda hoje o meu imaginário ambiciona repetir essa viagem do Pomarão até Mértola. É um forte desejo ver outra vez a Penha d’ Águia, os vaus onde o gasolina só passa na preia-mar (maré cheia). De um dos vaus os barqueiros até dizem que os “barcos têm que sair do Rio!”. Há as ameaçadoras rochas que as águas límpidas deixam ver. Em Mértola, no rio, a ponte barca (que já não existe), fazia a passagem de pessoas, animais e veículos para a margem esquerda, sobretudo para as Minas de S. Domingos. Era um barco caixotão guiado por duas correntes e movido por manivela que um homem rodava. Nunca tinha visto nada parecido.


[O porto fluvial do Pomarão]

Afinal foi pacífica a minha entrada na camioneta em Mértola. E a viagem até Beja foi a continuação do meu encantamento.

Em Beja impressionou-me o tamanho da cidade, o casario e o grande número de pessoas nas ruas. Mas como recordação, que ficou a traço mais forte, foram de longe, o Museu e o jardim.

[A Vila de Mértola com o seu cais]

O Museu ficava na mesma rua em que moravam os meus tios. Depois de saber o caminho visitava-o todos os dias. No trajecto passava por uma casa de costura. Lá trabalhavam cerca de 10 costureiras, que me cumprimentavam e me faziam muitas perguntas. Eu respondia embaraçado e envergonhado. Falava baixo, com voz fanhosa, incompreensível para elas, que pediam para repetir. Eu lá repetia como podia mas sem que previamente não tivesse que limpar várias vezes a garganta, tossindo. Depois destas conversas quotidianas lá ia até ao Museu. Ali deixavam-me entrar e apreciar quase religiosamente os objectos expostos.

[Biciclo]

Ainda hoje me lembro daquele que mais me impressionou. Era uma bicicleta, sem corrente, com os pedais ligados rigidamente à roda da frente, que era enorme em comparação com a minúscula roda traseira. De outros objectos expostos, que também me impressionaram, não recordo hoje nem um.

Ao jardim, ia sempre acompanhado, pois era mais longe. Impressionaram-me a beleza do arranjo e organização dos espaços, os caminhos entre relvas e flores, um lago com cisnes brancos que vinham morder os nossos sapatos, sem magoar; e, sobretudo… um automóvel a pedais.

Este automóvel fazia-me sentir autónomo, pois com o volante e os pedais era possível ir para onde quisesse. Discretamente e com simpatia, um guarda exercia a sua vigilância e a sua ajuda sem que eu suspeitasse. A experiência não me era desconhecida pois em Alcoutim os irmãos Fernando e João Dias já me tinham deixado conduzir o carro deles. Mas aqui era outra coisa. Estava mais livre, mais solto.
No regresso sei que mantive a mesma curiosidade e os olhos registaram o que lhes foi possível mas que o decorrer do tempo já esbateu.


[Jardim de Beja]

Vale a pena reflectir sobre como eram por ali os transportes nesse tempo. Para se viajar de Alcoutim para Beja, tínhamos que programar previamente a viagem. Utilizar um dos dois “gasolinas” de Alcoutim para Mértola, que tinham horário variável com as marés, em dia em que esse horário permitisse que tomássemos a camioneta de Mértola para Beja, com horário fixo. Era assim por não haver estrada para Mértola. Essa estrada só foi construída quase 10 anos depois, em 1947. Lembro-me de assistir à construção da Ponte sobre o Rio Vascão que une o Algarve ao Alentejo e o nosso concelho ao de Mértola.

Entre Vila Real Stº António e Mértola, além dos barcos à vela, atracavam em Alcoutim dois barcos a motor os “gasolinas” com carreiras diárias. Um era conduzido pelo mestre Manuel Enguiço e o outro pelo mestre Francisco Simões, casado com uma das irmãs Balbino.

De camioneta no final dos anos 30 já se podia ir até Vila Real Stº António.
Hoje, com a facilidade de transportes que temos, muitos nem acreditam, como nesse tempo era uma demorada aventura a viagem a Beja.