Pequena nota
Sinto um gosto enorme por poder publicar no ALCOUTIM LIVRE este texto (que assino por baixo) de autoria de Amílcar Felício.
A visão que eu tenho do António Pereira, do” Brejo”, do “Cerro” ou “Sacramento” está aqui completamente retratada e não traduz aquela que ficou na maioria das pessoas que o conheceram.
Se é verdade que ainda é, e continuará a ser lembrado, com as deturpações que o rodar dos anos trará, não é menos verdade que o será por aspectos menos positivos e principalmente por mal ajuizados.
Aprendi muito com ele do que é Alcoutim em todos os seus aspectos. As suas análises eram profundas e racionais.
Este é o António “Sacramento” que deverá ficar para a posteridade.
Obrigado Amílcar pelo seu valioso testemunho.
JV
Escreve
Amílcar Felício
Chamava-se António Pereira para a família, António do Brejo para alguns (poucos), Sacramento do Altar ou António Sacramento (*) para a quase generalidade dos alcoutenejos, o que o “fazia ir aos arames”.
[O hoje abandonado Brejo onde viveu António Pereira e que lhe motivou a alcunha. Foto JV, 2009]
Era um homem marginalizado e estigmatizado como um calão por quase todos. Alguns achavam graça aos seus ditos, quase sempre exagerados. Poucos compreendiam a razão da sua revolta e a sua personalidade apimentada.
Foi na minha opinião, uma das figuras mais fascinantes da 2ª metade do século XX em Alcoutim. Só as grandes almas conseguem provocar tanta controvérsia!
Apercebi-me cedo da sua maneira peculiar de ver e estar no mundo e tornámo-nos amigos íntimos, apesar da grande diferença de idades. Contudo, as voltas e reviravoltas da vida só me permitiram privar com ele ainda muito jovem e durante meia dúzia de anos, isto é, dos princípios da década de sessenta até 1967/68. Mas ainda chegámos a fazer algumas patuscadas, acamaradando, cantarolando e divertindo-se como se fosse um jovem como nós. O seu aspecto rude e sisudo era para consumo externo. Para os amigos estava sempre na galhofa e a “mostrar os dentes”.
Acontece-nos muitas vezes na vida, sermos levados por preconceitos educacionais ou ideológicos a reconhecer saberes, apenas àqueles que usam gravata ou a quem chamamos de doutores, menosprezando outros saberes de experiência feita e que tantas vezes não lhes ficam atrás. Pouca gente ligava “à conversa” do amigo António...
Ouvi da boca de um assalariado analfabeto alentejano depois do 25 de Abril uma frase lapidar, que me ficou a martelar nos ouvidos e que me fazia lembrar o amigo António: “se o patrão diz que é pedra, a gente diz que é ‘tarrão’(sic!)”. Tão simples quanto isto: duas maneiras diferentes de ver o mundo em meia dúzia de palavras! Exagerando um bocadinho como ele para melhor se fazer compreender, quase que podemos afirmar de que Marx para dizer o mesmo e teorizar as contradições do sistema capitalista, precisou de escrever uma mão cheia de livros. Que nos desculpe Marx por este exagero!
Considero que o traço fundamental da personalidade e carácter do amigo António era um forte espírito de resistente, de antes quebrar que torcer e a isso não fazia concessões. Nunca lhe observei uma atitude de subserviência fosse para quem fosse, mesmo na altura de maiores “apertos”. A esta característica não era estranha uma certa consciência social. Via o mundo do ponto de vista da sua condição social. Às vezes perguntava-me a mim próprio: o que teria sido este homem se trabalhasse nas quatro paredes de uma fábrica?
[Uma cabrinha foi sempre um suporte de António Pereira. Foto JV, 2010]
Podia passar fome mas raramente concedia mais-valias a alguém. Engendrou a sua própria auto-suficiência com uma economia de sobrevivência à base de uma ovelhinha ou uma cabrinha e do leite que elas davam, umas galinhitas que lhe davam carne e ovos e alguns trocos quando vendia alguma e figos, verdes ou secos, mas sempre muitos figos (“as figueiras amigo, dizia-me ele com graça, deviam de começar a dar figos em Maio e acabar em Abril”, ou então “quando a fome aperta amigo, vamos a uma figueira enche-se a barriga de figos e abre-se o último para ver se tem bicho e ai do bicho amigo, que passa pela goela do outro”!). Fazia também umas temporadas como cardador na Andaluzia ou no Alentejo para amealhar uns cobres para pão e tabaco.
[As cardas que lhe proporcionavam ganhar uns tostões]
Olhava para o mundo como se dominasse as leis que o faziam girar. Não nos poderemos esquecer de que “estagiou” por deveres de ofício como cardador, longos períodos na Andaluzia, julgo que até antes da guerra civil e no Alentejo, assistindo naturalmente a discussões e conflitos sociais que lhe teriam forjado a sua maneira de ver e estar no mundo. Se analisarmos os seus ditos mais conhecidos, rapidamente se chega à conclusão de que os diferentes interesses sociais estão quase sempre presentes na maioria dos que nos deixou: “Os pobres deviam ser todos enforcados com as tripas dos ricos!”.
Tínhamos por hábito passear pela noite dentro até à velha curva da Amoreira e quando voltávamos, sentávamo-nos numa barreira que existia na curva do Poço das Figueiras de aonde nasce agora a nova estrada para a Corte do Tabelião. Foi nessa barreira que lhe ouvi as opiniões mais extraordinárias que me deixavam de boca aberta quer pela perspicácia, quer pela clarividência. Encantava-me ouvi-lo dissertar sobre a vida!
Certa noite falávamos da vida difícil de quem trabalhava naqueles tempos e que às vezes não comia ao almoço mais do que pão com azeitonas ou pão com toucinho, como eu vi algumas vezes. Ele tinha ido uma única vez à ceifa no Alentejo em meados da década de 50 com a “talega” (taleiga como dizem os eruditos!) cheia de esperanças que lhe saíram furadas. Nunca mais lá voltou. Quase 10 anos depois, arrependido e revoltado, num tom de voz como se tivesse acabado de chegar, confessou-me: “vou morrer com este grande desgosto amigo, mas garanto-lhe que aqueles cabrões nunca mais me apanham lá”!
A crise dos princípios da década de sessenta começava a fazer estragos. Era visível e sentida na agricultura, no comércio, na indústria, no grande surto da emigração e migração, na juventude estudantil (tinha começado a guerra nas colónias e a crise universitária). Ao mesmo tempo Alcoutim esvaziava-se de população quase sempre com destino aos arredores de Lisboa (Sacavém) ou então ao baixo Algarve, aonde o turismo começava a despontar. Apesar da proximidade com Espanha, o estrangeiro nunca atraiu muito os alcoutenejos. Os que ficavam pareciam dormir o sono dos justos.
Ao amigo António porém, nada escapava apesar de não distinguir um A de um B. Não lia jornais porque era analfabeto, não ouvia notícias porque não tinha rádio, não via televisão porque não havia. Certa noite na dita barreira da curva do Poço das Figueiras, falávamos nesta tragédia nacional. O amigo António vira-se para mim e depois de uma curta reflexão pergunta-me: “sabe como vejo Portugal, amigo? É como uma grande fogueira sem labareda!” Só tinha ouvido dizer algo semelhante ao Camões no seu belo poema de amor “há fogo que arde sem se ver...” Vivíamos num Portugal cinzentão aonde nada mexia, aonde tudo perecia que estava feito de uma vez para sempre! Estávamos a 10 ou 12 anos das labaredas do 25 de Abril...
Escrevi uma longa crónica há já alguns anos no Jornal do Baixo Guadiana sobre a personalidade e alguns dos dizeres do amigo António, que não vou repetir. Mas para terminar aqui vão mais dois. Um deles em que os interesses sociais estão patentes, o outro mais repentista mas sempre certeiro.
[As serranias de Vaqueiros onde passou temporadas cardando. Foto JV, 2010]
As classes médias e os “colarinhos brancos” estavam sempre na mira do amigo António. Certo dia dispara esta: “o Zé Emídio (empresário/latoeiro) devia de ser obrigado a fazer um cântaro tão grande que levasse toda a água do Guadiana; o Felício (meu pai) devia de ser obrigado a enchê-lo com uma colher e o Leopoldo (responsável da então FNPT/Celeiro) a acarretar tanta lenha até que a água fervesse!”
O repentismo também o caracterizava... “Tarde Berraste (!)”. Quantos alcoutenejos dirão ainda este provérbio sem lhe conhecerem a paternidade? Evitei mencionar este seu dito nessa crónica que escrevi no JBG, porque poderia ser interpretado como um indicador de uma personalidade agressiva que na realidade não era. Era sim um homem duro, porque a vida também tinha sido madrasta para ele. A mim deu-me sempre um jeitão usá-lo e ainda o utilizo frequentemente. É certo que há provérbios semelhantes tais como «andas sempre atrás como o rabo!», «isso agora são sopas depois de jantar!» etc., mas nenhum tem a força e a clareza destas duas palavras. Às vezes quando o digo até me pergunto: será que eles me compreendem? Mas percebem sempre, tal é a sua força!
A estória conta-se rapidamente. O amigo António vinha com a sua cabrinha estrada abaixo até às imediações do Celeiro, aonde tinha que deixar a estrada alcatroada para subir o caminho de terra batida em direcção ao cerro aonde morava. A cabra não estava pelos ajustes, queria ir pela estrada e o amigo António puxava-a para o caminho. Ora puxa a cabra, ora puxa o amigo António até que já exausto e desorientado atira-lhe com a estaca com tanto azar que lhe acerta na cabeça. A cabra coitada baliu meeehhhh (!) e caiu redonda na estrada. O amigo António dispara de imediato: “tarde berraste!”
[À direita fica o cerro onde vivia no seu tugúrio. Foto JV, 2008]
Foi este amigo António que eu conheci. Um espírito de resistente que aliava um repentismo que fazia inveja (não era um homem de ataque, mas possuía um contra-ataque tão poderoso que punha qualquer opositor KO!), com laivos de filosofo popular. Possuía também um humor acre e uma faculdade enorme no uso de uma linguagem cifrada, que só entendia quem ele bem queria. Foi a única pessoa com quem me correspondi em Alcoutim, enquanto vivi 5 anos em Bruxelas. Era a minha mãe que lhe escrevia as cartas. Dizia-me ela: “não percebo nada do que ele te diz filho...”.
Para finalizar não resisto a contar uma vez mais esta estória, que ilustra bem esta sua última faceta. Sempre que chegava a Alcoutim para férias com os meus 16, 17 ou 18 anos lá vinha ele como sempre efusivo e entre grandes abraços, com os olhinhos a reluzirem de êxtase parecendo quererem saltar-lhe das órbitas, lá começava a pôr-me a par das “fofocas” e a contar-me as suas desventuras. “ Então meu grande amigo como é que vão aquelas maganas lá por Lisboa? Cada vez mais bonitas, não é? Ai amigo, amigo, qualquer dia vou ter que dar por lá uma volta que isto por cá anda muito mal!”.
(*) Nunca ousei perguntar-lhe de onde lhe vinha esta alcunha, porque sabia que isso o incomodava. Havia no entanto algumas versões sobre o tema. Estando seu pai muito doente e suscitando a atenção de toda a família, virou-se certo dia para a mãe em desespero e pergunta: “mas então nesta casa hoje nunca mais se janta, nem o Sacramento do Altar?” A vox populi alcouteneja atribuía por outro lado ao amigo António, este dito que se usava muito naqueles tempos em Alcoutim: “nem o pai morre, nem a gente almoça, nem o Sacramento do Altar!”. Carlos Brito num artigo recente no JBG referia: “Ganhou esta alcunha pela forma como pranteou a morte do pai em gritos compulsivos e repetidos”: “O meu pai morreu, valha-me o Sacramento do Altar!”.
O denominador comum a todas estas versões está no facto de a alcunha estar relacionada com a morte do pai. Vá-se lá saber qual é a verdadeira? Mas também o que é que isso interessa?