sexta-feira, 26 de março de 2010

Uma viagem pela EN 122 em 1945 -Como eram a camioneta, a estrada, e as pontes

Pequena nota

Mais um magnífico trabalho do nosso Amigo e colaborador que nos dá a sua visão de criança observadora e que o decorrer dos anos, não diluiu.
Ainda que já me tivesse sido contado uma versão, por pereirenses, esta retrata com pormenores engraçados e próprios da época, em que não falta o aviso do Sr. Francisco do Rosário.

JV






Escreve

Gaspar Santos




Em Junho de 1945 fui à Cidade de Faro pela primeira vez. Ia fazer exame de admissão ao liceu. Até Vila Real Santo António pela EN 122, depois até Faro de comboio. Tem hoje interesse referir apenas a viagem até Vila Real Santo António.

A estrada não era alcatroada. Era em Mac Adam (macadame)uma mistura de pedra britada e terra compactada e pressurizada pela passagem de um pesado cilindro. Levantava-se uma enorme poeira que entrava pelas frinchas da camioneta, depositava-se nas roupas e nos narizes. Havia mesmo alguns homens, mais preocupados com o seu aspecto, que viajavam envergando por cima do fato um ridículo guarda pó cinzento com riscas pretas.

O João Marques, que veio a casar com uma jovem do Pereiro, conduzia bem e era bom mecânico. Tinha essas duas qualidades que eram imprescindíveis nesses tempos. As estradas eram muito perigosas, com mau piso e muitas curvas. Na aproximação das ribeiras da Foupana e de Odeleite a sucessão das curvas resultava num “caracol” que punha à vista verdadeiros precipícios. As camionetas de tecnologia ainda muito mal dominada, sujeitas a avarias frequentes, exigiam que o motorista fosse capaz de se desenvencilhar também da parte mecânica.

O ajudante desse motorista ou revisor como se dizia nesse tempo era o Victor, um nosso velho conhecido. Fora empregado de lavoura da D. Carmem Caimoto e vivera na Rua das Flores em frente do nosso quintal nas instalações que nós conhecíamos como o palheiro do Victor.

A camioneta equipada com motor de explosão a gasolina, fora adaptada para consumir gasogénio. Um combustível a que, devido à falta da gasolina, se recorreu durante a guerra e que tinha origem no carvão vegetal. Este veículo tinha atrás uns cilindros semelhantes a panelas gigantes. Um cilindro onde o carvão ardia de maneira incompleta e, por não arder completamente, libertava uma mistura de dois gases. Um desses gases era o monóxido de carbono (ainda combustível), o outro era o bióxido de carbono já não combustível. Os outros cilindros constituíam filtros para separar a cinza dos gases.

[A camioneta que o autor descreve]

Este equipamento traseiro do veículo, ainda por cima complementado com uma escada para acesso ao tejadilho onde se acondicionavam as bagagens, prestava-se lindamente para a miudagem na Vila se pendurar e, na galhofa viajar umas dezenas de metros, às vezes até ao celeiro ou até à curva seguinte.

Era uma trabalheira fazer o motor funcionar com este combustível. Logo de manhã, para o arranque da caldeira havia que atestar de carvão e iniciar a sua demorada queima. Depois era necessário rodar uma manivela para aspirar a mistura até que esta já estivesse combustível, facto que o motorista testava com um isqueiro. Só depois o motor tinha condições para arrancar.

Este gás tinha pouco poder calorífico. Por isso a camioneta andava muito de vagar nas subidas, o motor aquecia muito, sendo necessário atestar a água de arrefecimento do radiador a cada 10 km andados.

As Ribeiras da Foupana, do Odeleite e do Beliche não tinham ponte. A sua travessia fazia-se dentro do leito das ribeiras sobre uma calçada, que também tinha umas passadeiras para peões. À falta de melhor, estas passadeiras indicavam em cada momento o nível das águas. O atravessamento no Inverno às vezes com caudais maiores dava problemas. Vezes houve em que as camionetas empanaram no meio da enxurrada e as pessoas cheias de medo tiveram que ser evacuadas, saindo pelas janelas. Pelo contrário no Verão com pouco mais de 20 cm de altura de água corrente não havia essa preocupação.

A camioneta, nesta minha viagem, como era habitual, teve outros problemas. Na saída do leito das ribeiras da Foupana e Odeleite devido ao íngreme da estrada o motor não tinha força para subir com os passageiros lá dentro. Assim as pessoas tinham que sair e durante 200 ou 300 m seguiam atrás do veículo e alguns até o empurravam. E foi assim comigo e outros passageiros. Só subiram aquelas rampas na camioneta as pessoas mais inválidas e senhoras que não quiseram sair. Na viagem de regresso, passados alguns dias, esta cena repetiu-se. E estas experiências tiveram-na as pessoas nesse tempo até surgir a tecnologia Diesel e o gasóleo.

Antes da Guerra (1939/45) Alcoutim era servida por camionetas a gasolina da Empresa Pilar de Tavira. Com a Guerra escasseou a gasolina e recorreu-se ao carvão/gasogénio nas carreiras da Empresa Rodoviária, com sede em Olhão. Só depois da Guerra surgiu a moderna tecnologia das camionetas a gasóleo – o motor Diesel.

[O IC 27 que proporciona hoje uma boa ligação entre Alcoutim e Vila Real de Sto. António]

Finalmente uma referência aos horários das camionetas. A Vila era ponto de passagem. A carreira tinha início de manhã na Aldeia do Pereiro, passava por Alcoutim e terminava em Vila Real de Santo António. À tarde fazia o percurso inverso. Tinha um horário, de manhã razoavelmente cumprido, caso o Senhor Francisco do Rosário não viajasse para Vila Real e mandasse informar o motorista: “Espere só um minuto que o Senhor Rosário ainda vai tomar banho”. Á tarde, quase no fim de percurso, a descontracção era maior. Muitos dias o João Marques atrasava-se a desempanar um automóvel ou moto ou por outro motivo. Mas as pessoas conformavam-se e não protestavam.

Hoje parece mentira como nos transportávamos naquele tempo.