quarta-feira, 17 de março de 2010

Corte da Seda (Alcoutim) - Fichas da minha gaveta

(PUBLICADO NA REVISTA STILUS, Nº6/7, JAN/DEZ, 2004 DA AJEA (ASSOCIAÇÃO DE JORNALISTAS E ESCRITORES DO ALGARVE))

Ao Nuno

Quando a mente trabalha no sentido de escrevinhar alguma coisa, é porque teve algo que a espicaçasse. A escrita, para mim, começa quase sempre por aí. A lembrança, o facto passado que nos vem à memória, germina, por vezes durante muito tempo, cresce, enforma e, quando bem adubado, dá fruto, mas nem sempre assim acontece por falta de amadurecimento.

Não digo que a ideia deste pequeno apontamento seja de hoje, mas afinal só agora irá germinar.

Conheço há mais de trinta anos este “monte”, designação que por aqui significa povoação, não sede de freguesia, e que pertence à freguesia de Alcoutim de cuja vila dista cerca de cinco quilómetros.

Se sairmos da vila e tomarmos a estrada nacional nº 122 – I, iremos encontrar à direita, poucos quilómetros andados, uma placa que nos indica Corte da Seda e seguindo-a, poucas centenas de metros percorridos, encontramo-nos na povoação.

Um pequeno largo, se assim se lhe pode chamar, possibilita a manobra de veículos, principalmente a inversão de marcha.

Recentemente, ali foi edificado um pequeno “monumento” de cariz religioso que obriga a uma reflexão

Quando se pretende dizer algo sobre uma povoação, o seu nome é sempre assunto a abordar.

O topónimo é composto. Corte, muito vulgar no Baixo-Alentrjo e no Algarve, principalmente na zona serrana e no barrocal, com incidência considerável no concelho de Alcoutim, já estudado e com explicações nem sempre coincidentes, pensamos que neste caso está relacionado com a criação de gado, mais propriamente com a sua recolha, designando um prédio misto.

Com significado idêntico temos os seus derivados Cortelha e Cortelo, por exemplo.

[Entrada do "monte". Foto JV, 1986]

Quanto a Seda, e pelo temos consultado, há quem o considere de origem obscura, contudo, a Profª Doutora Helena Catarino (1) arqueóloga que tem dedicado muito do seu trabalho científico a este concelho, ainda que não possua referências documentais, nem evidências arqueológicas, pensa que a produção de seda, sector têxtil que os muçulmanos desenvolveram, poderia ter-se estendido, nos séculos X – XI para ocidente de Niebla, onde a actividade está documentada, chegando ao Algarve Oriental, através de oficinas familiares e onde aproveitaram os vales abrigados do interior da Serra e próximos do Guadiana para a plantação das amoreiras.

A existência hoje na zona, de topónimos como Corte da Seda, Alcaria das Amoreiras (Castro Marim) e Amoreira (Tavira), não constituirão resquícios longínquos dessa actividade muçulmana?

Acontece que no caso da Corte da Seda, os terrenos à sua volta as características que referimos e que além disso, um pequeno riacho que lhe passa próximo é designado por Barranco das Amoreiras. O alimento para as larvas, através da folhagem de tais árvores, estava garantido.

Pensamos que a hipótese aventada tem plena justificação.
O General João de Almeida (2) refere a existência de vestígios de um castro Luso-Romano que terá dado origem à actual povoação.

Dois machados de pedra polida foram encontrados na zona, achando-se um deles num museu de Lisboa, tendo sido recolhido por Leite de Vasconcelos (3) e o outro, que tive oportunidade de observar, na posse de um particular.

Quem o recolheu, pensava tratar-se de “uma pedra de raio” e devido ao jeito da sua configuração, utilizava-o como bate estacas para prisão de animais, pelo que se encontra com algumas fissuras, É de tamanho considerável.

Através de explorações efectuadas por Helena Catarino, sabemos que no Curral Velho, num cerro rodeado de pequenos barrancos e a cerca de mil metros a sudoeste do “monte”, foram encontradas telhas de vários tipos e recolhidos fragmentos de olaria com decoração impressa com corda e alguns bordos grosseiros com características tardo-romanas ou alto-medievais.

Segundo as informações recolhidas junto de habitantes do”monte”, aqui terá existido uma necrópole com sepulturas cobertas de telhas.
Outro sítio arqueológico de interesse, está localizado no Montinho, entre a Cortr da Seda e o Marmeleiro, lugar que teve imensa ocupação romana e muçulmana.

Junto dos moinhos e perto do “monte” existem sinais de ocupação antiga.

A povoação é de tipo com-centrado, assentan-do em xisto vivo, numa pequena elevação com cotas rondando os 160 metros.

As ruelas, sem alinhamento e onde o piso já se encontra arranjado desde 1991 (4) são contornadas ora por casas de habitação, algumas modernamente transformadas, nem sempre da melhor maneira, ora por arramadas e palheiros com típicos boqueirões, construções na sua maioria já desactivadas.

[Velho, típico e desaparecido palheiro. Foto JV, 1970]

Nas moradias mais antigas, construções toscas de xisto e grauvaque e de lintéis de madeira, normalmente zimbro ou zambujo, há anos ainda se podiam ver pilheiras, lajes de xisto, saídas da parede, junto à porta, que se destinavam a colocar o tacho das papas, para arrefecer.

Na rua principal, se assim se lhe pode chamar, situava-se o forno comunitário, (vulgo do monte) de construção imemorial e que a todos servia.

A energia eléctrica chegou após o 25 de Abril de 1974. Água com bomba elevatória e três fontanários para a sua distribuição. Telefone público.

Em 1927 a população solicita à Câmara Municipal a abertura de um poço visto se encontrar sem água para beber. Houve dificuldades para a cedência do terreno que acabou por ser concedido a troco de 300$00 (5).

O Diário de Lisboa de 3 de Setembro de 1949 informa que há mais de um mês o poço público se encontra completamente esgotado, valendo na circunstância os proprietários que ainda têm alguma água nos seus poços.

Na Corte da Seda, as crianças deslocavam-se diariamente à vila, a pé, para frequentar a escola, o que era uma distância considerável.

Nas décadas de 50/60, o “monte” tinha algumas dezenas de habitantes, não havendo casas devolutas, as quais se dedicavam à pastorícia e à agricultura. Tal população proporcionava então a existência de uma venda (taberna), logo à entrada do monte e no ponto oposto, outro pequeno estabelecimento comercial à base de produtos alimentares.

Começa, entretanto, o êxodo da população para a cintura industrial de Lisboa e depois para o litoral algarvio, onde o turismo precisava de braços para a construção civil e hotelaria. Juntando os que emigravam principalmente para a França e Alemanha, originou a que, em 1976 a população já estivesse reduzida a quarenta e seis habitantes, para no censo de 1991 serem apenas dezoito! Hoje, treze anos passados, ainda será menor.

A criação de gado está documentada com certa relevância em 1771 e anos seguintes, englobando gado bovino, ovino, caprino e mesmo porcino. Eram nesta altura manifestantes de gado, entre outros, Manuel Vicente, o Velho, João Lourenço, Francisco Domingues e José Martins. (6)

No século passado, exploraram-se nas proximidades, duas minas: uma de cobre, designada da Roça Fria, situada entre o Barranco da Amarela e o Moinho do Escrivão, e outra na Casa Velha, próximo do caminho para o Marmeleiro.

No decorrer dos tempos, alguns dos naturais ou residentes neste monte têm desempenhado funções politico-administrativas e de solidariedade social a nível concelhio de algum relevo.

Assim, Gaspar Vicente foi Provedor da Santa Casa da Misericórdia em 1752/53 e Manuel Vicente, possivelmente da mesma família foi escrivão da mesma instituição de 1763 a 1765.

Também o alferes Custódio Afonso foi presidente da Câmara em 1835 e Manuel Cavaco, um dos maiores contribuintes do concelho, em 1858 fazia parte da Junta de Paróquia.

A Corte da Seda fez-se representar por José Nobre numa reunião efectuada em 22 de Dezembro de 1843, na Capela de Nª Sª da Conceição, na vila, para resolver o problema dos enterramentos na freguesia e que veio dar origem à criação do actual cemitério.

A Cheia do Guadiana de 1876, conhecida por Cheia Grande, cuja altura a que chegou, placas na vila e em Sanlúcar ainda mostram, causou prejuízos significativos a estas gentes pois eram proprietários de fazendas (várzeas) nas margens do Guadiana. Manifestaram na Câmara esses prejuízos e indicamo-los por ordem decrescente, Isabel Custódia, Isabel da Palma, Vª, Manuel Guerreiro, José Dias dos Santos, Manuel Alexandre, José Martins e Ana Madeira, Vª.

A presença do Remechido e seus sequazes no concelho é um facto, tendo mesmo incendiado as Casas da Câmara, na vila.

Além do que ficou lavrado nos livros camarários, as mentes registaram e a tradição oral tem transmitido com a deturpação natural, no decorrer dos anos.

Por todos os montes ainda existem estórias para contar mas que se vão perdendo por falta de registo.

Destas estórias registei, entre outras, a que me foi contada na vila por quem tem hoje quase noventa anos e que a ouviu contar à avó. Trata-se de uma família que tem raízes seculares na vila e não sei mesmo com alguma ligação à Corte da Seda.

Diz assim: Na Corte da Seda um homem, abordado por hoste de guerrilhas, é instigado a fazer a entrega do dinheiro que possuía, o que não faz, alegando que não o tinha. Como represália, é atado ao rabo de um dos cavalos. Perto da Corte Tabelião, já exausto, acede a voltar para trás e entrega todo o dinheiro que tinha em prata e que não era pouco, salvando assim a vida!

É referido mesmo o nome da família da vítima, penso que ainda existe no monte.

Quando as pessoas fugiram à aproximação dos guerrilhas, faziam-no em burros, escondendo-se onde podiam. Sempre me têm dito que atavam uma pedra ao rabo do burro para que assim não zurrasse, denunciando a localização.

A designação rústica de Eira do Capitão, era capaz de nos levar a algum habitante que teria exercido funções nas “Ordenanças”.

[Antigo e desaparecido forno comunitário. Foto JV,1970]

Maria da Assunção e Custódia da Assunção, deste monte, pelas dez horas da noite do dia 9 de Julho de 1890 atravessam no sentido Espanha-Portugal, clandestinamente, o cordão sanitário da área, instalado devido à cólera que grassava naquele país, pelo que foram postas de quarentena. (7)

Uma última referência para o facto de uma fotografia do monte que apresenta em vários planos quatro beirais de telha de canudo, as paredes caiadas e componde a objectiva uma parreira e uma malva, Tudo isto simples mas genuíno.

Este recanto que a máquina captou, foi escolhido para ilustrar uma obra literária que refere o património cultural popular do nosso país. (8)


(Meu Caro Nuno, por agora é o que consta das minhas fichas sobre a terra de teus pais e onde nasceram e acabaram alguns dos teus ascendentes e brincaste na tua meninice, visitas sempre que te é possível e a que dedicas carinho)


NOTAS

(1) “O Algarve Oriental durante a Ocupação Islâmica”, in Al`- Ulya, Revista do Arquivo Histórico Municipal de Loulé, nº 6, 1997/98.
(2) Monumentos Militares Portugueses, 1946
(3) “Objectos Arqueológicos de Alcoutim”, in O Arch. Port., Lisboa, Vol. .XXIV, 1919
(4) Boletim da Câmara Municipal de Alcoutim, nº 9 de Dez/91.
(5) Acta da Sessão da C.M.A. de 21 de Julho de 1927.
(6) Tomo de Manifestoz da Camera dos Gadoz, iniciado em 1771 (?)
(7) Of. Nº 125 de 10 de Julho de 1890 do Administrador do Concelho de Alcoutim ao Governador Civil de Faro.
(8) Portugal – Património Cultural Popular 1 – o ambiente dos homens, Hélder Pacheco, Areal Editores, 1985.