terça-feira, 30 de março de 2010

Uma pequena aventura nas Festas de Sanlúcar



Escreve

José Miguel Nunes


Há “estórias” que só se podem contar passados alguns anos, esta é uma delas.
Recuemos então 23 anos, até 1987. Eram as férias da Páscoa, e como acontecia todos os anos encontrava-me em Alcoutim a passar esses dias. As festas de Sanlúcar são por essa altura, e nesse ano coincidiram com os dias em que aí estava, pois nem sempre acontecia, umas vezes, um ou dois dias antes de chegar, outras vezes, um ou dois dias depois de me vir embora.

[Virgem de La Rábida]

Tal como os espanhóis não falham as Festas de Alcoutim em Setembro, também nós não falhamos as deles, e claro, depois de jantar, lá pelas oito, nove horas, atravessámos o Guadiana em direcção a Espanha.

Nessa noite lá fomos nós em grupo até Sanlúcar, sinceramente já não me lembro nem quem, nem quantos éramos ao certo, mas entre amigos residentes em Alcoutim e outros vindo de fora, talvez fossemos aí uma dezena.

A festa estava animada em Sanlúcar, e claro o pessoal acabou por se dispersar, formando grupos mais pequenos. Uma “canha” aqui, uma “tapa” ali, com mais dois dedos de conversa, preferencialmente com alguma espanholita que sorrisse a uma piscadela de olho, lá iam passando as horas, sem que nos déssemos conta disso.

[Cais de Sanlúcar em 1986. Foto de JV]

Eu tinha ficado com o..., chamemos-lhe J.A., e a determinada altura demos conta que já não estava por ali ninguém do pessoal, aliás, já estava muito pouca gente na rua, olhámos para o relógio e a hora marcava já umas quatro da manhã, portuguesas, pois na hora espanhola, temos que acrescentar mais uma. Bem, dirigimo-nos até ao cais na esperança de ainda por lá estar alguém que nos levasse para Alcoutim, mas nem vivalma.

Depois de alguma conversa do que iríamos fazer, o J.A., residente na vila, sabia onde morava o barqueiro, e queria ir lá bater à porta, para ele nos ir levar a Portugal, ao que eu lhe dizia que era melhor não, pois já era tarde e ainda íamos arranjar confusão, mas ele tanto insistiu que lá fomos. Claro que ninguém abriu a porta.

[Alcoutim e Sanlúcar num óleo de JV, 1973]

Com isto, mais uma hora tinha passado. Viemos novamente para o cais e sentámo-nos nas escadas ao pé do rio, determinados a aguentar até de manhã e esperar que o barqueiro se levantasse e nos fosse levar. O grande problema é que o frio começava a apertar e tínhamos ainda pelo menos umas duas ou três horas de espera pela frente.
Começam então a germinar ideias para resolvermos a situação em que estávamos. O plano era simples: levar um barco dos que estavam atracados no cais, e a remos atravessávamos o rio, chegados a Alcoutim, íamos comer qualquer coisa a minha casa (onde eu estava sozinho, pois os meus pais ficavam em Afonso Vicente), vestíamos uma roupa mais quente e voltaríamos a Sanlúcar antes de nascer o dia, para depois regressarmos com o barqueiro e assim ninguém dava por nada … era o plano perfeito.
Bem pensado, melhor feito, agarrámos no barco e atravessámos o rio, ainda demos um pequeno encosto num iate que estava ancorado no meio do rio, mas nada de especial, acho que nem os tripulantes acordaram. Chegados à margem portuguesa, atracámos no cais velho, amarrámos bem o barco com uma das amarrações presa ao cais novo, e pusemo-nos a caminho de minha casa. A vila estava deserta, corria tudo às mil maravilhas. Comemos, vestimos uma roupinha mais quente, e preparávamo-nos para cumprir a segunda parte do plano, que basicamente era voltar a Espanha e deixar o barco no local de onde o tínhamos tirado. Como ainda tínhamos tempo, decidimos esperar mais um pouco, resultado, adormecemos…, acordámos já passava bem da hora de almoço. Bom, não tínhamos ido levar o barco, e isso ia dar alguma confusão na vila, pensámos nós, mas como ninguém nos tinha visto, até nem estávamos muito preocupados, não tínhamos estragado nada, só tínhamos trazido um barco “emprestado”, portanto, era só devolve-lo, nada mais simples.

[O cais novo nos dias de hoje. Foto JV]

Decidimos então ir até lá abaixo ver se se passava alguma coisa. Ao chegarmos à Sociedade, logo encontrámos pessoal amigo que nos contam que o alarido era grande, pois alguém tinha roubado um barco em Espanha e que este tinha ficado pendurado no cais, pois quem o tinha feito, não tinha dado folga suficiente na amarração a fazer conta com o vazar da maré. Logicamente este pormenor não fazia parte do nosso plano, pois não tínhamos previsto adormecer.

Já no café do Carlos e com a Guarda Fiscal à mistura, invadiram-nos de perguntas, como tínhamos vindo, a que horas, com quem, ao que nós lá íamos respondendo conforme podíamos. Sem nos contradizermos, lá conseguimos sem grande dificuldade engendrar uma história mais ou menos fiável que nos ilibou daquela situação. Problema resolvido.

Pouco depois, e já estávamos nós descansados, chega-me aos ouvidos que alguém tinha visto alguma coisa: dois moços a chegar de barco já madrugada dentro. A coisa começou a complicar-se outra vez, mas esse alguém era e ainda é muito meu amigo, e tinha-nos realmente visto chegar e reconheceu-nos, conforme me disse, no entanto,não foi muito difícil depois de uma pequena conversa, convencê-lo a não nos denunciar.
Lá se entregou o barco aos espanhóis e passados uns dias já ninguém falava do assunto. Ficou apenas a recordação de mais uma aventura em Alcoutim.