sábado, 3 de abril de 2010

Da origem das Festas de Alcoutim aos "seios" de grão de café!



Escreve

Amílcar Felício


“Em tempos longínquos... entre Alcoutim e Sanlúcar... havia-se estabelecido um extraordinário intercâmbio comercial de gado grosso, cavalar e muar e vasta comunicação em termos de verdadeira amizade e sob todos os pontos de vista”, escrevia o saudoso amigo Sr. Luís Cunha no Diário Popular de 13/05/68, artigo reproduzido no Alcoutim Livre de 12 de Março último.

Embora desconhecendo este artigo, conhecia perfeitamente os ecos da notícia que ele refere e que me chegaram provavelmente na Taberna do meu avô, local de convívio das classes trabalhadoras de então e verdadeira Escola de Vida para mim, nos meus tempos de menino.

[Rua Portas de Mértola. Foto JV]

Na realidade deliciavam-me aqueles serões da minha infância, sentado entre os homens nos bancos corridos da Taberna, a ouvir as estórias que eles contavam! Estórias de trabalho, de caça e pesca, de contrabando, da cobra de 20 metros que até já tinha pestanas de tão velha e que muitos garantiam já ter visto, nomeadamente no Cercado do Mineral, pois dormia no Castelo Velho (versão da década cinquenta da Moura Encantada certamente) etc., etc., etc.

Assim, entre uma rodada de copos de vinho de garrafão Abel Pereira da Fonseca e um cigarro de mortalha de Onça Duque ou de Três Vintes (20-20-20) depois de um dia extenuante de trabalho, contavam estórias excitantes para entreter o tempo e enquanto eles bebiam um copo ou fumavam um cigarro, recuperando energias para o dia seguinte, eu “bebia” com avidez algumas das mais belas estórias da minha infância que nunca mais esqueceria, substituindo com vantagem os livros de banda desenhada e de aventuras que nunca li.

[Rua Portas de Mértola, aspecto actual. Foto JV]
Lembro-me de falarem daqueles tempos recuados e de referirem que a travessia do Guadiana era feita a nado pelos cavalos, éguas e mulas e que o local da Feira era na Fonte Primeira, hoje conhecida como Praia do Pego Fundo. Ali se concentrava todo o gado português e espanhol para a Feira e para o negócio que se lhe seguia.

O tempo que tudo transforma, teria feito diminuir gradualmente este importante comércio e a Guerra Civil espanhola de 1936/39 ter-lhe-á dado a estocada final, particularmente no que respeita ao gado que vinha de Espanha e interrompido bruscamente as relações intensas entre as duas povoações ribeirinhas.

Mas aquela Feira deixou uma semente importante. Terá sido com base nessa Feira secular, que nasceu primeiro a Feira e Festa de Alcoutim e mais tarde unicamente as Festas de Alcoutim. Efectivamente referia-me o meu pai, que o declínio cada vez maior da Feira e o menor fluxo de gente à Vila naquele período, teria conduzido a “elite pensante” de então a compensar esse decréscimo, com a realização complementar de umas Festas, ideia surgida no grupo de amigos nomeadamente o Sr. Serafim, o velho Dr. João Dias e o meu próprio pai. E assim terão nascido as Festas de Alcoutim coincidentes com a data da Feira. É esta pelo menos a minha mais profunda convicção. De acordo com os estudos realizados por José Varzeano sobre aquela época, Fernando Dias terá sido o grande impulsionador das Festas e terá liderado a juventude do seu tempo na concretização daquele evento.

[Dançando as "sevilhanas" na Festa de Alcoutim. Foto cedida por Gaspar Santos]
Por outro lado “há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não...” e a Guerra Civil espanhola apesar do drama sangrento e da separação dolorosa que provocou entre as duas povoações, não conseguiu matar completamente essa velha relação entre os dois povos ribeirinhos, criando essa figura mítica do Contrabandista, que continuaria a ligar as duas margens contra tudo e contra todos, atingindo naturalmente o seu auge na década de quarenta. E que pena que a maior parte desses verdadeiros heróis de carne e osso, tenham levado consigo para a cova tantas e tantas aventuras! A rede de contactos pessoais ou mesmo familiares existentes até então, terão facilitado e de que maneira todo o circuito de entrega e escoamento da mercadoria.

Lembro-me do pequeno Ti Eliseu, atarracado e forte como um touro – talvez o mais valente de todos os Contrabandistas -- contar que numa noite de cheia no Guadiana, ficou com a “carga” às costas encravado nas patas de um burro que vinha afogado rio abaixo e que quase o levava desta para melhor. Assim como noutra ocasião, em que estava escondido em cima de um eucalipto com a “carga” lá em cima também a fazer horas para a travessia e sentarem-se 2 Guardas Fiscais debaixo do eucalipto, à espera que o turno acabasse e ele aflito, com uma vontade de urinar terrível...

Mas havia mais. Como a estória do Ti Gonçalves barqueiro com a lancha cheia de ovos meses e meses a fio, a subir rio acima ao pôr do sol direito à Lourinhã junto à margem portuguesa e que quando escurecia, dava meia-volta direito ao Alcaçarinho aonde tinha o contacto para a entrega da “carga” e assim fintar os Carabineiros, que o acompanhavam meio escondidos no canavial do lado espanhol... E a estória do vizinho Zé Emídio latoeiro, que só abandonou as lides quando viu uma saraivada de balas em Espanha, fazerem-lhe cócegas à sola dos sapatos e ele teve que marimbar-se na “carga” para salvar a pele... o susto foi de tal ordem que abandonou o ofício de vez.

A proximidade destes acontecimentos e as conversas constantes à volta do tema com os meus 5, 6 ou 7 anos, permitiam-me imaginar com um realismo cinematográfico, o ambiente que se vivia em Alcoutim nos anos quarenta e que comparado com os tempos actuais nos fazem reflectir!

[Monumento ao contrabandista, em Alcoutim. Foto JV]
Efectivamente toda a gente sabia quem eram os Contrabandistas, incluindo a Guarda Fiscal. Aliás, dizia-se que até às 6 horas da tarde era frequente confraternizarem nas tabernas à volta de um copo ou de um petisco. A partir dessa hora despediam-se e diziam: “a partir de agora cada um para o seu posto e vamos ao trabalho”!

Num país de “compadres” como poderemos constatar mais uma vez nos dias que correm, Alcoutim deveria receber uma medalha de mérito! Até custa a acreditar, mas parece que era mesmo assim. No entanto, não consta que tivessem ocorrido grandes problemas, apenas algumas “cargas” perdidas depois de uns tiros para o ar. Contudo nunca ouvi comentar, que houvesse compadrio entre Guarda Fiscal e Contrabandistas. O que estes referiam, era sim o conhecimento profundo que possuíam de todos os hábitos, manhas e manias de cada um dos Guardas, conhecendo ao pormenor as suas rotinas, conhecimento esse que utilizavam na perfeição para o seu arriscado trabalho. Era o jogo do gato e do rato e o rato ganhava quase sempre.

Constava-se pelo contrário, que a Guardia Civil não tinha contemplações e atirava mesmo a matar. E que quando ocorria uma ou outra morte, davam-se ao requinte de deslocar os cadáveres para o lado português do rio, para sacudir a água do capote. Mas não se pense que os Contrabandistas entravam em Espanha às apalpadelas! Tudo estaria devidamente organizado com os seus vigias no outro lado que controlavam os passos da Guardia Civil, sinalizando quando era seguro a entrada em solo espanhol ou com sinais de luzes durante a noite ou pedras atiradas ao rio etc. Durante o dia dizia-se que com um espelho ou com qualquer outro sinal, iam comunicando fazendo assim o ponto da situação ao longo do dia. Que jeito dariam os telemóveis naquela altura!

Recordo-me de o meu pai me contar que numa noite de baile, apeteceu-lhe fumar e foi até ao velho banco do Celeiro aonde acendeu o cigarro, o que sinalizou a sua presença de imediato a grande distância. Pouco tempo depois passa por ele alguém, estrada abaixo, em missão de reconhecimento. Sem lhe dirigir palavra, esse desconhecido dá meia-volta de imediato e segue pelo mesmo caminho de aonde tinha vindo, direito às antigas passadeiras da ribeira. Dez minutos mais tarde volta a passar, mas desta vez já vinha “acompanhado com a talega” às costas. O meu pai curioso grita-lhe: “não avance”!!! O desconhecido recua apressado e em surdina pergunta-lhe: “está a Guarda aí à frente Sr. Felício”? “Não pá, desculpa lá, era só para saber quem eras”, diz-lhe o meu pai! Era o Ti Pandareta. Quando o meu pai voltou ao baile já ele lá estava todo aperaltado e diz-lhe a sorrir: “você há bocado meteu-me cá um cagaço do caraças”!

[Guarita da Guarda-Fiscal em Alcoutim. Foto JV, 1988]
Tive a felicidade de percorrer nos finais da década de sessenta entre as 3 e as 6 horas da manhã de um invernoso mês de Janeiro, um velho trilho de Contrabandistas na fronteira norte do país, aquando da minha deserção do Exército. Pude observar como o trajecto era integralmente vigiado do lado português e perfeitamente “oleado” do outro lado, com a colaboração de nuestros hermanos. Experimentei entre ribeiros e caminhos escalavrados a ansiedade que aqueles homens deveriam ter sentido e a coragem a que tinham que deitar mão, para ganhar o pão nosso de cada dia. Para emprestar maior realismo ao cenário e como teria acontecido a tantos deles, ainda em Portugal estivemos sob a mira de 6 velhas Mausers, mas o esquema estava bem montado e seguimos viagem. Para quem tem 20 anos fazer isto uma vez é uma experiência enriquecedora (ou radical como diríamos agora), mas fazer disto vida no dia-a-dia, anos a fio e já homens maduros, é obra! Foram de facto verdadeiros heróis. Por isso sempre lhes tirei o chapéu. Alcoutim merecidamente erigiu aos seus heróis uma bela estátua no Cais Velho!

[Sanlúcar, a irmã siamesa. Foto JV]

Contudo a situação liberalizou-se bastante a partir dos meados/finais da década de cinquenta, embora o comércio continuasse a ser proibido por lei, de ambos os lados da fronteira. Apesar dessa liberalização, continuavam a existir no Quartel da Guarda Fiscal em Alcoutim as célebres “apalpadeiras” para verificar se as mulheres que iam a Sanlúcar, traziam algo de contrabando. Os homens eram “apalpados” passe a expressão, pelos próprios Guardas. Ainda era obrigatório pedir autorização ao Chefe da Guarda Fiscal para ir a Espanha e vice-versa e apresentarmo-nos à autoridade no regresso. Estávamos ainda longe do Mundo sem Fronteiras dos nossos dias!

Mas os esquemas de contrabando tinham mudado radicalmente e os produtos “contrabandeados” eram principalmente café em grão, corda, tabaco etc., sendo feito nesses tempos à luz do dia e durante as próprias Festas. Eu por ser miúdo, tinha a “função” de acompanhar a um pequeno quarto na mercearia dos meus pais, as espanholitas que entravam e que pareciam umas tabuinhas de engomar, saindo dali gordas e anafadas com uns peitos de fazer inveja ou uma barrigona de grávidas incrível! Eram quilos e quilos de café que transportavam camuflados ou nos seios ou na barriga! Apesar dos cuidados e do receio que demonstravam, penso que a Guarda Fiscal fechava os olhos, uma vez que a lei continuava a proibir o comércio e com aquele procedimento “cumpria-se” rigorosamente a lei.

Também já era frequente nos anos sessenta observar o velho barqueiro Dominguez nas suas tradicionais “alpergatas” e de olhos sempre tristes que nem parecia um andaluz – tinha sido obrigado a ver fuzilarem-lhe o pai e um irmão e dizia-se até que a abrir-lhes a própria sepultura – fazer diariamente a travessia do rio, para levar e trazer os produtos mais triviais.

[A barca de passagem. Desenho de JV, 1993]
Socialmente a minha geração na década sessenta, colocaria um ponto final no esmorecimento das relações entre as duas populações reatando em pleno, o relacionamento com a juventude espanhola, que se tinha deteriorado em consequência dos acontecimentos das duas últimas décadas. Formou-se efectivamente um grupo que foi gradualmente engrossando a outras pessoas mais velhas de que recordo o Sr. Ângelo (Secretário da Câmara da altura) e o Sr. Paulino (Chefe da Tesouraria) entre outros e que veio a gerar pelo menos um casamento e fortes ameaços de enlaces. Refiro-me ao casamento do Sr. Ângelo já falecido, com a Tónia (obrigado Sr. Nunes pelas notícias. Olá Tónia! Como han pasado casi cincuenta años, mi cago en Diós!). Contrariava-se mais uma vez a desconfiança histórica quer do lado português: “de Espanha nem bons ventos nem bons casamentos”, quer do lado espanhol: “callate niño que aí vien Dom Nuno!” Referiam-se naturalmente ao D. Nuno Álvares Pereira, que era o terror dos meninos espanhóis.

Esta desconfiança que foi um facto real histórico entre Portugal e Espanha, parece que nunca passou nem por Alcoutim nem por Sanlúcar. Alcoutim e Sanlúcar formavam decididamente um mundo à parte! Foram sempre verdadeiras “irmãs siamesas”, como dizia o amigo Luís Cunha no seu artigo. Apesar de que hoje, parece que já não se conhecem...

(Nota: o único “arquivo” que consultei para escrever esta crónica foi a minha memória e uma ou outra pequena correcção de que o Sr. Nunes teve a amabilidade de me comunicar, pelo que lamentamos se eventualmente subsistir alguma imprecisão nos temas relatados)


Pequena nota

Caro Amigo:
Nestas coisas e principalmente quando a transmissão é feita por via oral, estas pequenas divergências são naturais, dependendo da sua origem.
Aquilo que me foi transmitido oralmente e que acabei por referir no meu livro, Alcoutim, Capital do Nordeste Algarvio (...) coincide com o que aqui refere.
Gaspar Santos depois de ter lido atentamente o livro teve a amabilidade de me escrever uma longa carta em que anota algumas falhas ou incorrecções e entre elas o facto de terem sido os jovens unidos pelo G.D.A. e liderados por Fernando Dias que deram o pontapé de saída às Festas. Quando posteriormente consultei o arquivo daquela associação tive oportunidade de confirmar isso como refiro no pequeno opúsculo que escrevi sobre o GDA.
É natural que estas coisas tivessem que ter o aval das figuras políticas e não só da vila de Alcoutim, onde era proeminente o Dr. João Francisco Dias.
Durante os onze anos a que assisti às Festas de Alcoutim e onde modestamente prestei o meu auxílio e que me lembre de momento teve lugar na decoração, na feitura de uma gincana de “motorizadas” e na confecção de um estrado e palco que serviram muitos anos, já que até aí era um grande problema para a organização a que nunca pertenci.
Durante estes anos a organização era feita por dois ou três jovens locais que acabavam por assumir todas as responsabilidades e eu sei como era difícil fazê-lo pois se viesse a chuva (o que acontece por vezes nesta época do ano) onde estava o dinheiro para o cumprimento dos contractos assinados por eles?
Sempre ouvi as suas lamentações quanto à falta de apoio do comércio local.
Se o que vem por via oral pode ter vários matizes, o que fica escrito por vezes também não corresponde à realidade.
Tanto antes como depois do 25 de Abril sempre que um ministro saía era a seu pedido e não por “demissão”, o que quase sempre acontecia. Que eu me lembre, ficou conhecido um caso relativamente recente em que o 1º Ministro precedeu à exoneração visto o visado não a ter querido pedir.
Nas Câmaras Municipais era e é prática usada e até em relação a funcionários que eram assim aconselhados para fugirem a processos disciplinares que podia levar à demissão.
A nota acabou por não ficar tão pequena como desejava.

JV