segunda-feira, 5 de abril de 2010

O lobo - devastador dos rebanhos alcoutenejos no século XIX!

(PUBLICADO NO MENSÁRIO O DISTRITO DE FARO DE FEVEREIRO DE 1997)

Pequena nota
Este artigo foi um dos dois que escrevi para este mensário regional.
JV


[O autor quando escreveu o artigo]
No século passado a população de Alcoutim, vasto concelho da serra algarvia, vivia fundamentalmente de duas actividades que estão muito ligadas: a pastorícia e a cerealicultura.
O manifesto de gado, principalmente de pequeno porte, como o ovino e o caprino, é em grande número, constituindo vários volumes que existiam no arquivo da Câmara Municipal.

A vida foi-se modificando, a desertificação começou a efectuar-se primeiro para o litoral algarvio, onde o turismo provocou oferta de trabalho, principalmente a nível de construção civil e indústria hoteleira.

Auscultando sempre que possível a memória das gentes, nunca nos foi contada qualquer estória passada com estes mamíferos de pêlo normalmente pardo e que se escondem nos matos.

Querem alguns que Alcoutim tivesse sido chamado pelos árabes, Alcatiã, que significa manada ou rebanho de gado. Também se traduz por “alcateia” de lobos, devido talvez à existência desses animais carnívoros na serra que lhe fica próximo. (1)

Pelo que me foi dado ler, sobre o século passado, se o número de lobos não era elevado, pelo menos era suficiente para causar prejuízos nos gados e originar a organização por parte da Câmara Municipal e Juntas de Paróquia, de batidas (abatidas segundo os documentos) para lhes causar baixas e afugentá-los.

Nos dias 13 e 16 de Março de 1836, fizeram-se batidas para as quais, segundo o costume local, foram convocados todos os habitantes do concelho. Os que faltaram, pagaram a multa de 500 réis, os que não compareceram à hora determinada, no local, onde se repartiriam, 240 réis e os que não foram ao que lhes estava destinado, a multa de 6 vinténs. Revertia tudo para as despesas do concelho.

A edilidade, que estava reunida, deliberou pagar os seguintes prémios:- a quem matasse um lobo, 1200 réis e sendo zorra ou gato bravo, seis vinténs. (2)

No ano seguinte, mais duas batidas são organizadas. Para a segunda, invoca-se a sumária necessidade (...) para afugentar os lobos que tanto estragos causão nos gados.
A Câmara determinou que primeiro se devia obter autorização do Administrador Geral “por não convir nas actuais circunstâncias fazer-se sem ela” (3) Estava em causa a guerrilha que nesta altura infestava a serra algarvia e era chefiada por Remechido.


Durante três anos a situação não se devia ter agravado, mas nos dias 7 e 13 de Setembro de 1840, voltaram os alcoutinenses a realizar mais duas batidas.

Deram-se as ordens nesse sentido e quem faltasse pagaria a multa de trezentos réis, se fosse trabalhador e quinhentos se fosse lavrador. Aparece aqui a diferença de taxas talvez consequência do liberalismo.

A primeira montaria cerrava no sítio do Landeiro, entre Tacões e Fonte Zambujo e a segunda no serro das Mortalhas, entre Zambujal e Vaqueiros. Mantinham-se os prémios instituídos para as espécies abatidas. (4)

Em 1854 por iniciativa do vereador Joaquim Pedro Teixeira, de Giões e pelos motivos habituais, organizaram-se duas batidas, uma no dia 17 e outra no dia 25 de Fevereiro.

Na sessão camarária de 2 de Março resolveu-se pagar os prémios do costume, referente a um lobo e dezoito zorras.

Como da análise da situação se concluiu que se escaparam alguns lobos, resolveu-se fazer nova batida no dia 15.

Os mattos da Ribeira da Foupana são indicados como o principal coito de lobos e zorras pelo que lhe é feita uma batida no sítio do Palheiro do Sobrado. (5)

Durante cerca de vinte anos não se fazem “abatidas” porque os resultados não correspondem aos incómodos e dias perdidos aos que a elas concorriam. (6)

A proliferação dos lobos faz-se entretanto e o Regedor da Freguesia de Martim Longo exige uma montaria aos lobos de modo a evitar de futuro tantos prejuízos. É pedida a colaboração dos moradores das freguesias de São Pedro de Sólis, São Miguel do Pinheiro (Mértola), Santa Cruz e Ameixial (Loulé) e de Cachopo (Tavira). A bandeira mestra seria colocada na Portela do Pereirão e teria lugar no dia 8 de Outubro de 1879. (7)

Na década de oitenta o número de batidas sobe bastante e é frequente a substituição de “abatida” por montaria e mesmo “montada”.



Em 15 de Janeiro de 1885 a bandeira foi colocada nas proximidades do ”monte” de Monchique (Vaqueiros); em 14 de Fevereiro do mesmo ano o sítio escolhido é o da Parreira, próximo da Ribeira da Foupana, solicitando-se a colaboração das gentes de Cortes de São Tomé (actuais Corte Nova e Corte Velha), Vale do Pereiro e Furnazinhas da freguesia de Odeleite.

Em 1886 o Regedor da Freguesia de Vaqueiros diz que os lobos ali devastam os gados e em tão grande número que aterrorizam os moradores.

O Administrador do vizinho concelho de Mértola pede a colaboração dos habitantes de alguns “montes” da freguesia do Pereiro numa montaria a realizar em breve. Aos que não colaborarem serão aplicadas as multas constantes do código de posturas do concelho.

A última abatida de que temos notícia realizou-se no dia 24 de Janeiro de 1891 e foi requerida pelos lavradores de Giões. Os moradores do Serro da Vinha, Coito e Tesouro foram dar a mão, no sítio da Foz do Malheiro, aos do concelho de Mértola (freguesia do Espírito Santo), seguindo pela ribeira acima até ao moinho do Marmeleiro, sendo o cerramento no sítio da Volta dos Aldeanos, próximo da Ribeira do Vascão.

Como vedes os lobos criaram grandes dores de cabeça aos alcoutenejos daquele tempo, no entanto foram eles que acabaram por desaparecer completamente, vítimas da perseguição a que foram sujeitos.
Os javalis infestam presentemente todo o concelho e o povo diz na sua sabedoria que em terra em que há javalis, não há lobos. Será verdade?

O arquivo municipal foi incendiado pelo Remechido pelo que não nos foi possível recuar mais no tempo por falta de documentação.


NOTAS

(1)-Lendas- Histórias- Etimologias (...), Alexandre de Carvalho Costa, 1958, pág. 98
(2)-Acta da Sessão da C.M.A. de 5 de Abril de 1836.
(3)-Acta da Sessão da C.M.A. de 7 de Setembro de 1837.
(4)-Acta da Sessão da C.M.A. de 3 de Setembro de 1840.
(5)-Acta da Sessão da C.M.A. de 28 de Janeiro de 1858.
(6)-Of. nº 10 de 16 de Fevereiro de 1876, do Regedor da Paróquia do Pereiro.
(7)-Of. nº 135 do Regedor da Paróquia de Martim Longo.