Pequena nota
Este tipo de tragédias acompanha sempre os cursos de água: rios, ribeiras e lagoas naturais ou artificiais. O povo desde sempre tem dito que é” o pagar do tributo” pelas vantagens de variadíssimos tipos que eles nos trazem.
Bem criança vi morrer nas águas do Tejo um jovem, imagem que ainda retenho na memória. Talvez por isso nunca tive qualquer relação de afectividade pela água do mar os dos rios, gosto de as ver mas de longe, costumo sempre dizer que a minha praia é a de restolho!
Durante a minha estada em Alcoutim deu-se a morte de um jovem que ainda hoje mexe comigo. Vi salvar, por dois corajosos alcoutenejos, infelizmente já desaparecidos, António Pedro Domingos (vulgo António Brandão) e António Carlos Vicente (vulgo António Emídio), uma jovem que com outras se banhava no Pego das Portas, da Ribeira de Cadavais.
Também no meu tempo, um miúdo foi agarrado pelos cabelos quando caiu ao rio.
Ouvi contar vários casos de afogamento e alguns de salvamento decorridos ao longo dos tempos incluindo este.
Constou-me que há poucos anos também foi vítima uma criança que vivia num iate.
Isto acontece aqui como em qualquer outra parte.
A referência que Gaspar Santos faz à corda atada, ainda hoje me causa ânsias, pois a minha mulher fazia isso ao filho e eu entrava em verdadeiro pânico, pelo que nem me quero lembrar das aflições que passei com isso!
Há bem pouco tempo. Esse menino de então, banhava-se no mar entre Peniche e as Berlengas.
Fui uma única vez à Berlenga e chegou.
Podeis ler agora, com a fidelidade e minúcia que lhe são reconhecidas, a tragédia vivida e descrita pelo nosso colaborador, Eng. Gaspar Santos.
JV
Escreve
Gaspar Santos
Em Alcoutim o Rio sempre foi vida e deu vida. O ciclo das marés é vida pelo seu movimento periódico. São seis horas a correr para Norte na enchente e seis horas a correr para Sul na vazante. Tem apenas uma curta paragem de cerca de 15 minutos quando a corrente muda de sentido. É vida como espaço de pesca, espaço de lazer e divertimento náutico. É vida, sobretudo, como “auto-estrada” de ligação para todo o mundo. Dava trabalho em todas as fainas de transporte de pessoas, de cargas e descargas de mercadorias, adubos, cereais e produtos agrícolas. Regavam-se as plantas das suas margens com água do rio. Os barqueiros também bebiam dele.
[O Guadiana como grande rio do Sul. Foto JV, 2010]
Mas, se era fonte de vida e de alegria, também trazia tragédias de vez em quando. Quase todos os anos o Rio cobrava o seu pesado tributo, pelo muito que dava, arrancando à vida alguém que tinha um deslize nas suas águas.
Só quase no final dos anos 40 do século passado se generalizou o hábito de aprender a nadar e praticar algum desporto aquático. Antes disso poucos sabiam nadar e até mesmo alguns profissionais dos barcos se caíssem à água não se salvavam.
[Rui Simão, o segundo a contar da direita]
Decorria o Verão de 1941. Um vizinho e meu amigo, chamado Rui Simão, que morava no nº 1 da Rua das Flores (em restauro por casal inglês), e outra vizinha, Maria Rita Domingos, que morava no nº 6 foram tomar banho no cascalho do Pinhão. O pai do Rui Simão era Guarda-fiscal e estava de serviço ao porto, e assim tomaria conta de ambos e impediria que estes dois jovens se afastassem muito da margem. Passados porém alguns instantes os dois garotos começaram a ser arrastados pela corrente. O senhor Simão, vendo que eles por si sós não conseguiam voltar para terra, atirou-se à água como estava, fardado, com botas, polainas, cinto e sabre – só deixando em terra a espingarda. Conseguiu salvar o filho que já sabia nadar, embora pouco. Tentou, mas não pôde salvar a jovem e acabou por se afundar com ela.
[O eucalipto do Pinhão que para engrossar tem de medir forças com o cimento com que o cercaram! Gente que sabe o que faz!]
Alguém viu e lançou o alarme. E aqui se viu sobressair a solidariedade dos alcoutenejos. O Dr. João Francisco Dias veio para o Pinhão com todo o equipamento médico de socorro. Todos os barcos presentes se mobilizaram imediatamente com fateixas e âncoras para resgatar os dois corpos. Ao mesmo tempo, todos os jovens bons nadadores se lançaram em sucessivos e prolongados mergulhos na tentativa de os encontrarem. A vila inteira estava mobilizada espontaneamente para o que fosse necessário.
Ao fim de longos minutos foi trazido para terra o corpo franzino da Maria Rita. Durante cerca de uma hora a equipa médica fez o que pode, respiração artificial, aquecimento, injecções, massagem etc. Não conseguindo que ela recuperasse.
Quando o Dr. João Dias considerou que nada mais havia a fazer para salvar a jovem, apareceu o corpo do vizinho Simão. Repetiram-se as mesmas manobras, mas da mesma maneira elas foram mal sucedidas. Ele era uma pessoa robusta mas infelizmente tinha sido retirado da água mais de uma hora depois, quando o afogamento já estava consumado.
A tragédia que se abateu sobre esta rua perdurou na nossa memória durante muitos anos. Foi um grande desgosto que todos nós tivemos. O susto tinha sido enorme, e assim por precaução, a minha aprendizagem de natação ficou prejudicada e atrasou-se.
A partir dessa data fatídica, minha mãe nunca mais me deixou nadar sem que ela assistisse da margem da Ribeira de Cadavais. Obrigava-me, como outras mães, a atar uma corda à cintura, ficando todo tempo com a outra ponta na mão. É claro que se as mães se sentiam mais seguras, nós sentíamos vergonha e um desejo grande de escapar àquela vigilância forçada, o que mais tarde acabou por acontecer.
Tratou-se na verdade de uma grande tragédia que enlutou a nossa rua, mas igualmente toda a população da Vila. Na nossa rua viviam apenas 3 famílias nos números 1, 4 e 6 e uma senhora velhinha a tia Luisinha no número 2. Éramos 17 vizinhos com muitas relações de cooperação e de amizade. Tanto o Rui como a Maria Rita e os irmãos de ambos eram meus companheiros de brincadeira. E era no nosso forno que as três famílias coziam o pão.
A viúva do vizinho Simão nunca mais ultrapassou o desgosto da perda do marido. Os pais da Maria Rita também sofreram bastante. E também as relações entre as duas famílias ficaram afectadas.