quinta-feira, 21 de julho de 2011

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações VII





Escreve


Daniel Teixeira


O MEU PRIMO CALVO



Não vou dizer qual o nome dele até porque o meu primo já faleceu e embora a(s) sua(s) histórias e as histórias passadas com ele sejam interessantes acho que não justifica estar aqui a desvendar - nomeando o personagem - uma coisa, a calvície, que ele tão laboriosamente escondeu ao longo dos anos. Vou contar apenas um aspecto, hoje...penso continuar com histórias diferentes tendo-o como autor ou contador.
De reparar, desde logo, que o defino como calvo porque na verdade dentro de todo o seu saber, que tinha algum, e o seu sentido de humor, que tinha muito, é este o aspecto que mais me lembro dele no sentido de ter procurado sempre e não ter encontrado até hoje uma explicação plausível para tal trauma que em certas circunstâncias acabava até por ser paradoxal.

Internado no Hospital de Vila Real de Sto António (numa altura em que ainda lá havia hospital é claro) devido a doença cardíaca que acabou por o levar, após ter aguentado durante alguns anos (poucos) um AVC bastante forte que lhe retirou a capacidade de falar , o meu primo, mesmo no seu estado, tendo-lhe sido retirada a peruca pelo pessoal de saúde, acabou por optar por colocar um lenço quase em estilo feminino em volta da cabeça...para tapar a calvície.

Sei, por leituras que tenho feito, que o adorno capilar é desde há cerca de 5 mil anos um elemento importante para a auto-estima das pessoas e chega a funcionar até como indicador sexual...mas, sejamos honestos...perante uma evidência e uma irreversibilidade há que viver o melhor possível com o que se tem...não é por acaso que o chamado «capachinho» é por vezes gozado...o cantor Carlos do Carmo andou anos com capachinho até ter chegado à conclusão que estava a ser ridículo (nas suas próprias palavras). Bem, mas voltando ao meu primo que não cantava fados...

Diga-se, em abono da verdade, que no caso dele não era uma simples e modesta falta de cabelo, umas entradas, ou mesmo um cocuruto desguarnecido: o arraso feito pela natureza ao seu cabelo, provavelmente resultado de alguma medicação tomada ou de alguma doença tinha-lhe apenas deixado umas farripas junto às orelhas e na parte baixa anterior do crânio, uma verdadeira razia, verdade seja dita. Era um homem relativamente novo na altura que o conheci, talvez com 30/40 anos e trazia já consigo este problema quando se casou com uma prima irmã da minha mãe.

Agora que o tempo passou calculo o problema que terá sido para ele confessar, em período de namoro, a sua quase ausência capilar craniana. Pelos vistos a minha prima, fazendo parte do ramo «desportista» de família, terá ido para casa, após a despedida, rir perdidamente, não pelo facto do seu futuro marido ser careca mas, tal como eu, por ele dar uma importância quase doentia a isso. Acho que ele levou as duas irmãs em socorro e suporte no dia da confissão...

Eu não sabia de nada, durante muito tempo não dei por nada: aliás, acho que só fui confrontado verdadeiramente com isso na tal primeira visita que lhe fiz no Hospital de Vila Real, embora já soubesse por via da minha mãe. Só que não pensava que a coisa fosse tão grave, quer dizer, que o complexo tivesse aquelas características.
Na verdade, íamos à pesca, à lapa, com água até à cintura e lá estava ele de chapéu na cabeça calcando a peruca: sentávamo-nos à mesa e lá ficava ele de chapéu na cabeça, embrenhava-se nos troncos para apanhar alfarroba, amêndoas ou azeitonas e...chapéu sempre. Um dia apanhei-o a dormir numa eira, era a hora da calma e vi a rapidez com que ele, ainda estremunhado, jogou a mão ao chapéu com peruca inclusa. Nem deu tempo para eu ver...o que eu vi foi um golpe de rins para encontrar o chapéu que tinha caído durante a soneca e acabei por pedir desculpa por o ter assustado como pensei que tinha feito.

Fora isso e mesmo com isso era um excelente homem, com um sentido de humor notável, bom contador de anedotas, sapateiro de profissão acabei por lhe guardar algum rancor temporário por me ter lixado umas botas que eu adorava, simplesmente. Eram daqueles botins afunilados na ponta, uma compra da moda, botas de andar suave, tacões ruidosos, afiveladas e naquela altura quase dormia com elas, passe a expressão.
Tive um acidente com uma pedra ao jogar um pontapé numa imaginária bola e para além de ter ficado com os dedos doídos acabei por descoser um niquinho na ponta da bota direita. Não há problema...o primo é sapateiro, ele passa aí uns fios, mete um bocado de cola (naquele tempo a cola tudo era feita de farinha) e está resolvido o assunto...pensei.

Mas pensei mal...o olhar minucioso do técnico torceu o nariz e fez aquele olhar que só se vê actualmente em mecânicos de automóvel «amigos» : um olhar único, uma expressão de quem está muito, mas mesmo muito para além de nós em termos de conhecimento: breve, ele viu o problema em toda a sua abrangência...aquela bota não era uma bota descosida, era um universo a desmoronar...por isso nada de pontos e cola só...a bota nunca ficaria boa e a durar...deixasse eu que ele tratava. E tratou, grátis como sempre por ser para mim...

[Vila Real de Sto. António. Praça marquês de Pombal. Foto JV, 2011]

Meteu a bota na forma, levou dois ou três dias de volta dela e entregou-ma com um sorriso de satisfação: era um bom trabalho, perfeito mesmo, luzidias vinham as duas como que saídas da fábrica: só que a que ele arranjara trazia a ponta redonda, tipo bota cardada. A outra mantinha a ponta em bico...só tinha sido engraxada. Acho que não se deve chorar por estas coisas...ao fim e ao cabo esta vida são dois dias...mas interiormente consegui conjugar um agradecimento com uma enxurrada de lágrimas.
Perdi a botas afuniladas, únicas, umas botas que quase faziam parte de mim...No dia em que ele faleceu, eu e um outro primo meu, fomos fazer-lhe uma visita a Vila Real ainda. Parecia estar melhor...falámos alguma coisa, nós, ele sorria e ria...pediu-me por gestos para lhe levantar o almofadão atrás das costas: respirava melhor assim - e fez os gestos todos: apalpou no peito, respirou fundo. No dia seguinte recebemos a notícia de que ele tinha falecido meia hora depois de o deixarmos.

O meu companheiro de viagem a Vila Real, supersticioso e homem de benzeduras aventou-me dias depois que «se a gente não o tivesse ido visitar se calhar ele não morria já.»