Pequena nota
Apresentamos hoje mais um texto do nosso amigo e colaborador Daniel Teixeira que descreve com realismo e sabor picaresco as suas vivências em Alcaria Alta, monte da freguesia de Giões, concelho de Alcoutim, em meados do século passado.
Nessa altura, ainda a aldeia fervilhava de gente. Hoje está quase desabitada!
JV
(Publicado no Jornal Raizonline nº 106, de Fevereiro de 2011)
Escreve
Daniel Teixeira
Lembranças, recordações, saudades...são só as boas.
Tenho já falado por várias vezes nisto, aliás falo sempre nisto, desta forma, quando me refiro ao passado. Aquela parte do passado que nós vamos buscar nas nossas recordações é na sua larga parte o bom naco do tempo, a parte idílica, a parte melhor, o presunto, o cozido de couve, o arroz doce, ou mesmo as «nuvens» ou «sonhos» ou as filhoses, as empanadilhas com batata doce, o bom pão saído do forno e comido, logo ali, partido aos bocados com as mãos e mergulhado num prato de esmalte florido e decorado com mais um fundo de azeite bem verdinho e sal grosso.
Que belo momento meu deus, este do pão, que belo tempo, que bela lembrança, que coisa simples e que ideia nova que os montanheiros foram buscar: viver no simples, com meios simples e fazer deles, desses meios simples, dessas coisas simples, valorosos momentos: lembro-me bem do largo sorriso da minha mulher, citadina de gema, quando foi confrontada com esta inusitada merenda e este inusitado momento.•
Sentada nas pedras soltas da cerca - ela que ainda hoje tem medo das então abundantes lagartixas - e mandando também às urtigas os receios com a manutenção da «linha», era vê-la a molhar o pão e a rir como uma criança crescida. Pão quente com azeite e sal: quem se lembraria disso?
Pois...eles, os montanheiros, as mulheres dos montanheiros trouxeram esse momento desde o tempo dos seus avós e bisavós e mais que se lhe segue para trás : passavam homens e mulheres vindos das hortas chocalhando as asas dos baldes e a Ti Chica, a mulher do «tiro e queda», via o seu pão cozido a desaparecer mas não se importava: ela tinha tempo, com três filhas e meia dúzia de hortas para regar, marido sempre ausente no pastoreio, tinha tempo...naquele tempo ela tinha tempo. Hoje, já não (!)...ou tem todo o tempo do mundo.
A última vez que a vi, passados não muito largos anos, andava com um andarilho arrastando-se pela casa e era tão diferente, tão diferente, a Ti Chica, a mulher do «tiro e queda» ... O tempo é de facto um cavalo, como dizia o meu Tio Zé Teixeira, expressão que na altura e agora se compreende bem e talvez melhor por aqueles lados...pelos lados da serra. Anda muito depressa, o tempo, tão depressa que nem o vemos. Mas ele passa mesmo e deixa rastos bem vincados na terra e muito mais ainda nas pessoas.
O «tiro e queda», o marido da Ti Chica cujo nome real não me vem à memória tal a sua falta de ligação ao Monte, era pastor, daqueles pastores de grandes rebanhos, de centenas de cabeças. Durante os tempos que por lá andei ainda miúdo vi-o apenas uma vez, já de partida, calças repletas de remendos bem certinhos, como era uso, seifões de pele de ovelha acorreados na cintura e nas pernas, quatro ou cinco camisas e blusas «para não deixar entrar o calor» e o indispensável colete de bolsinhos elevados mostrando correntinhas de ferro presas nas botoeiras: canivete, bolsa de tabaco, isqueiro, carteirinha, tudo era preso à roupa por aqueles lados. Deixar cair alguma coisa era nunca mais a encontrar no meio das pedras, das ervas, do chão crestado ou enlameado, no emaranhado de estevas.
Corria as serras em busca de erva e uma ou duas vezes por ano ele e o rebanho acampavam em montes vizinhos de Alcaria Alta. Era quando ele vinha ao Monte e vinha ver a mulher: «dar o tiro» dizia-se por lá com ar de algum gozo.
Mas ele não tinha cara de merecer ser alcunhado, foi o que eu disse para mim quando o olhei bem: porte endireitado, ar sociável, quase contente por ver gente, pequenino mas ligeiro e rijo deu-me os bons dias sem nunca nos termos visto com um sorriso simpático e isso bastou - me para que ele ficasse a ser, para mim, ainda um miúdo a crescer na escola, um senhor, um senhor dos montes e das serras. Um navegador dos tempos secos, uma pessoa que vivia durante semanas de quase nada: pão, presunto, azeitonas, um ou outro tomate colhido numa horta ou a fruta raquítica daquelas paragens.
Talvez pescasse pensei...talvez em ratoeiras apanhasse coelhos, talvez, talvez...certo era para mim que ele não merecia ter aquela alcunha ou qualquer outra. «Tiro e queda»...mesmo que fosse: e era mesmo queda, depois do tiro.
Quer dizer a mulher ficava grávida ou pelo menos passados uns meses começava-se a notar a barriga na Ti Chica. Com pouco que falar para além de falar do trabalho estas coisas eram notadas, apontadas e maliciosamente faladas entre ela e as outras mulheres. «Ora...Ora!! Lá estão vocês!!» E ria a Ti Chica, como ela ria...
Teve «apenas» três filhas, contudo: a «fábrica» parou antes do tempo por causa daquelas coisas que acontecem às mulheres e só às mulheres depois de uma doença mais rebelde.•
Mais tarde, eu, casado de fresco, fiz centenas de fotografias daquele tempo e caso me tivesse esquecido de como era a Ti Chica e as suas filhas tinha sempre essa cábula: praticamente fotografava tudo o que mexia e o que não mexia; as hortas, apesar de pobres estavam bem decoradas de verdura, as árvores, mesmo as mais feias como as figueiras quase deitadas ou as alfarrobeiras, algumas centenárias, tinham sempre um pássaro ou alguma coisa que justificasse o clique.
Guardo essas fotografias todas num álbum: as moças da Ti Chica, de 14 / 15 anos, de jeans meia perna, tão bonitas que elas eram: uma de cabelos encaracolados louros, duas de cabelo castanho e ruivo. «Mal empregadas» naqueles montes, naquelas terras, regando hortas, indo ao poço, levando comida ao porco de engorda, tratando da lida da casa, cozendo roupa ou fazendo meia, vieram para a cidade...vejo uma de quando em vez: está tão velha cá como estaria lá apesar da relativa pouca idade.
Há tempos encontrei - ou fui antes encontrado - por um familiar da Ti Chica: trabalha num talho. Não me lembro dele lá mas lembro-me da mãe da Ti Chica e do padrasto de quem ele é sobrinho: a Ti Maria Joaquina, casada em segundas núpcias depois de enviuvar, de voz grossa, geria a casa: o marido já bastante mais velho que ela ainda percorria o monte apoiando-se num cajado. Moravam no Rossio...engraçado como uma Monte com tão pouca gente tinha tantos «bairros»: Era o Além, o Castelo, a Praça, a Portelinha e a Portela.
A Portelinha dava para sair para Santa Justa e lados de Vaqueiros; a Portela dava para sair para Giões, para Martinlongo por uma nesga de estrada e o resto a corta mato e mais que se encontrasse pelo caminho. O Além, o bairro do Além, era mesmo além, depois do Rossio. A Praça era mesmo uma praça, quer dizer um espaço empedrado vazio com uma fileira de casas só de um lado e duas outras em esquina. Por vezes aparecia a lógica: havia a Ti Mari Joaquina da Praça e a Ti Mari Joaquina do Rossio, esta a mãe da Ti Chica do Castelo.
Hoje nada mais por lá há: dizem-me que o Monte está mais arranjadinho, que os homens andaram a alcatroar as estradinhas e que roubaram a máquina de costura da minha avó: uma verdadeira antiguidade, uma relíquia, uma Huskvarna. Tac tac tac...tanta roupa que ela coseu, tanta costureira que ela ensinou...bem merece ter alguém que volte agora a cuidar dela.