sábado, 30 de julho de 2011
Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações VIII
Escreve
Daniel Teixeira
A FILHA DO CHICO ARTUR
Alcaria Alta e toda a parte nordeste do Algarve, de uma forma geral, era e é, penso eu, por mais flores que se coloquem em ajeitamento do cabaz, um meio extremamente pobre…e era pobre até para os mais ricos (se é que este termo se pode utilizar).
No estudo – que já aqui referi em crónicas anteriores – comparando a zona raiana de Portugal com a zona vizinha de Espanha, para além da divisão da propriedade ser abissalmente diferente, para além dos pólos populacionais serem eles também abissalmente mais numerosos e maiores em Espanha havia também estatísticas sobre gado. Este era em maior quantidade por exploração em Espanha mas sobretudo no que interessa agora com maior e diferente variedade nas espécies.
O número do gado de pastoreio pode representar duas coisas: de um lado uma maior ou menor riqueza das culturas de solo espontâneas ou não ou inversamente a falta de concentração numérica por exploração e logo a inviabilidade ou dificuldade em ter gado de estábulo, ainda que com apoio do pastoreio mesmo sendo o solo rico.
Os nordestinos algarvios tinham, nesse estudo, um número desproporcionado de gado de pastoreio na sua relação com o gado de estábulo, sobretudo ovelhas e muito longe depois vinham as cabras.
Os rebanhos de ovelhas, ou mistos de ovelhas e cabras que eu conheci atingiam por vezes várias centenas de cabeças. Contudo eram rebanhos associados na sua maior parte: quer dizer havia por exemplo 300 cabeças de três ou quatro donos que dividiam entre si a responsabilidade de pagar ao pastor (que por vezes ele mesmo tinha as suas cabeças no conjunto). O gado porcino, de estábulo e pequeno pastoreio sobretudo de bolotas, era em número residual e pelo que sei era sobretudo de exploração familiar para engorda caseira.
[Rebanho de ovelhas com o seu pastor. Foto JV, 2009]
Ora, um dia, e vindo dos lados da serra de Tavira, e quando eu me deslocava para uma hortinha que tínhamos algures para os lados do Ribeirão, vi uma vez passar um rebanho de porcos para aí com mil cabeças, talvez. Todos sensivelmente do mesmo tamanho – e logo da mesma idade – iam para a Feira de São Marcos, conduzidos por um único pastor e dois cães. O homem ia nas calmas, os cães ao seu lado e ele a meio da cabeça e de olho na frente e nos guias do rebanho.
Olhava para trás, de quando em vez dava um assobio a marcar a sua presença e lá iam eles os porquinhos, em fila compassada, com semi-trote nas perninhas. Durante o tempo que levaram a passar por mim, sensivelmente meia hora, nem uma única vez o pastor ou os cães tiveram de intervir o que me fez ficar a reflectir sobre a diferença entre estes porcos e aqueles que eu e meus amigos filhos de lavradores levávamos a pastar até à Ribeira da Foupana.
Nós ficávamos literalmente de bofes de fora até chegar ao sítio do poiso nosso e porcino, tínhamos de saltar barrancos e cercados, voltar atrás buscar alguns atrasados, proteger as zonas de cultivo, enfim: pensei que bom era que os «nossos» porcos enfileirassem assim como aquele ordenado rebanho pelo menos 30 vezes maior que o nosso.
Pastávamos cerca de 30 indisciplinadas cabeças, marrões e parideiras, seus descendentes de semi – mama e candidatos aos postos dos pais ou não. Eram, na caminhada, uns baldas os nossos porcos. Se não se dissesse que os porcos (e os animais em geral) não pensam nem têm emoções, diria que eles se sentiam livres e gozavam a sua liberdade.
Levavam a maior parte dos dias nos pocilgos, ganindo desalmadamente com fome…a sua função era reproduzirem-se e recebiam como alimento o correspondente à sua utilidade imediata. Não havia nem vontade nem dinheiro que permitisse uma fuga humanitária que metesse um pouco mais de papa nas gamelas…era aquilo a que se chama de vida de cão aplicada a porcos.
[Feira de S. Marcos no Pereiro, 2011. Foto de JV]
Sempre vi por lá, por aquela região toda, uma cultura mental não propriamente resultante de escassez no limite mas sobretudo de calculada contenção: os tempos tinham ensinado que os objectivos pretendidos eram cumpridos assim, daquela maneira, e logo…não se ia mais longe.
Os porcos de engorda, quase imobilizados em espaços pequenos, comiam e dormiam e engordavam por vezes não muito: o falhanço ou a glória do maior ou menor peso era atribuído à qualidade do porco, à sorte na escolha, ao calor do verão mas nunca à falha alimentar.
O primeiro empreendedor no ramo animal a sério, mas dentro dos limites calculáveis pelo ambiente geral que conheci no monte foi o Chico Artur – natural do Pereiro e casado com a Ti Inácia. Sobre o seu envolvimento na produção animal e sobretudo na porcina e na porcino - javalinesca e de aviário falarei noutra altura. Tinha uma visão empresarial menos conservadora que os locais de nascimento em geral mas no seu final parece-me ter sido ultrapassado pelo peso da realidade. Um sonhador (?) talvez...
Tinham dois filhos cujos nomes não vou referir, mas vou lembrar uma miúda de oito/ dez anos, amorosa mesmo, de tez um pouco sardenta e cabelo louro que a minha mulher adorava. Tinha uma face linda e uns olhos azuis toldados por alguma melancolia já. Eram boas companheiras…conversaram bastante durante alguns anos quando lá íamos e a escola estava sempre presente como tema.
Sentadas no poial que bordava a fronteira da casa (loja, habitação e armazém numa só enfiada) ou sentadas no lance de escadas que dava acesso à loja lá as deixava eu e lá ia buscar a mulher passado tempo. Esperta ria-se da ignorância da minha mulher em relação às coisas do campo e acabavam rindo as duas.
A miúda dava de comer aos porcos e galinhas e ajudava na lida da casa e da mercearia / taberna. Como toda a gente deveria dizer, de fora do monte e mesmo a gente do monte, entre quem tinha ideia ou consciência das perspectivas de vida por lá, nós dizíamos também que era uma pena uma miúda assim estar condenada já àquela vida. Pelo que se via em termos de estudos permitidos dificilmente ela passaria da escola primária e era a antecipada visão daquela miúda, atrás de um balcão da mercearia e taberna, de lenço escuro enrolando os caracóis e chapéu na cabeça que quase aterrorizava.
O tempo passou, como passa sempre.
O filho do Chico Artur teve alguns problemas de saúde e calhou a ficar internado numa unidade onde a minha mulher trabalhava na altura. Um dia ele recebeu uma visita: a irmã.
Esta imediatamente reconheceu a minha mulher e voltaram a conversar. Conversaram muito de novo. Não era fácil o caso do irmão, sabia eu já e sabia ela também. Tudo se iria arranjar, disseram entre si...mas não se arranjou. Há coisas que se compõem e coisas que não se compõem. Ela, a miudinha sardenta e loura conhecia uma outra face da medalha da vida.
«Está quase igual ao que era lá…trabalha na Suíça. Muito fina no trato, de brinquinhos pequeninos e cordãozinho de ouro discreto…está uma senhora, uma verdadeira senhora ainda menina. Está quase igual…fiquei tão contente!».
Eu também...