segunda-feira, 24 de outubro de 2011

As minhas quatro moedas






Um conto de


José Temudo





O que pretendo contar-vos hoje, é uma “estória”... sonhada.

Mas entendamo-nos já sobre o que é uma “estória sonhada”. Ela não é filha da minha imaginação, não é mais um produto da minha capacidade inventiva, É uma “estória” real, que aconteceu, ainda que vivida dentro de um sonho, no reino imaterial dos sonhos, onde a magia é rainha absoluta e caprichosa, por vezes, generosa, mas, não raramente, perversa e cruel.

Dito isto, passo então a contar-vos a minha “estória”, isto é, o meu sonho. Prestem, pois, a vossa atenção.

Como é meu costume, vou andando de cabeça baixa, olhos postos no chão, dois metros à frente dos meus passos. O caminho, de pé posto, é estreito e sinuoso, e vai por entre estevas, rosmaninho e alecrim. De súbito, paro. O meu olhar fixa-se no que me parece ser uma moeda. Aproximo-me e fico sem dúvidas. É mesmo uma linda moeda. Que jeito me dá!, pensei. Meti-a ao bolso e continuei a andar. Uns passos mais adiante, paro de novo: quase coladas uma à outra, mais duas moedas! E a minha fortuna não ficou por aqui, pois, à medida que ia caminhando, fui encontrando mais moedas, cada vez em maior número. Já de bolsos cheios, a abarrotar de moedas, no próprio sonho, fui assaltado por mais por mais do que justificada dúvida: “Não estarei eu a sonhar?” A dúvida, contudo, dissipa-se depressa. Apalpo as moedas, chocalho-as, ouço-as, sinto o seu peso nos bolsos. Afastada a dúvida, instalou-se a curiosidade: “se não é sonho, como explicar todas estas moedas como que semeadas ao longo do caminho?” A resposta a esta pergunta veio rápida, aceitável: “Alguém, antes de mim, terá passado por aqui, carregando às costas um saco de moedas: o saco ter-se-á rompido e foi largando moedas a conta gotas, sem que quem carregava o saco desse por isso. E continuei a andar. Mas, agora, sem apanhar mais moedas, pois os bolsos já estavam cheios. À medida que ia andando, ficava cada vez mais claro para mim que já não era o dinheiro, nem sequer a mera curiosidade que animavam os meus passos. Eu caminhava movido por uma vontade que não era a minha, por um poder que não me permitia que voltasse para trás, sequer que parasse, era uma força determinada que me queria levar a um qualquer lugar. E foi o que aconteceu, depois de ter andado não sei durante quanto tempo. Depois, deixei de sentir que estava a ser como que empurrado. Parei. Então, à minha frente, a três ou quatro metros de distância, os meus olhos viram, maravilhados, não uma, não duas, não apenas muitas, mas um monte deslumbrante de reluzentes moedas de prata, novinhas em folha! Eu era todo olhos! Fascinado, ou enfeitiçado ou hipnotizado ou sei lá como. Aproximei-me lentamente do monte de moedas. Maquinalmente, as minhas mãos deslizaram, em jeito de afago, sobre a superfície daquele prodígio. Depois, lentamente, mas com determinação, e sentindo nisso um prazer que, pouco a pouco, me foi percorrendo o corpo todo, enterrei-lhe as mãos até aos cotovelos. E, então, num repente, com frenesi, como se tivesse enlouquecido, fui atirando as moedas ao ar, com as duas mãos, às braçadas. Desafiando a lei da gravidade, as moedas não caíam, permaneciam no ar, revoluteando, cintilando, formando sobre mim como que um céu em miniatura. O que a aconteceu até este momento excedia tudo o que eu pudesse imaginar. Mas, o que eu via agora, a meus pés, excedia não só a minha imaginação, como a minha própria capacidade de sonhar. Quatro moedas de ouro, diferentes no tamanho, iguaizinhas na cor e no brilho, ali estavam, no chão, ao alcance das minhas mãos. Os meus olhos já não podiam abrir-se mais, o meu encantamento não podia ser maior! Quando me baixei para as apanhar, eu não me sentia rico nem por um só momento me passou pela mente o que eu podia comprar com tal fortuna. Sentia-me, isso sim, eufórico, imensamente feliz, só por poder olhá-las, tê-las na minha mão, saber que eram minhas! A emoção era tanta e tão intensa, que era demais para uma pessoa só. Eu tinha que a partilhar com alguém, pois corria o risco iminente..... de uma explosão de alegria! E foi o que fiz, correndo, saltando, galgando, quase voando, sobre montes e vales, até que cheguei junto a quem queria mostrar o meu pequeno mas tão querido tesouro.
- “Olhe”, disse eu, abrindo a mão. “Acaso, já alguma vez viu quatro moedas mais brilhantes, mais lindas do que estas minhas?”
- “Não”, respondeu esse alguém, “ de facto, nunca vi moedas de que gostasse tanto como das tuas! Mas falas-me de quatro moedas; na realidade só vejo três na tua mão.”
- “São quatro”, reafirmei, confiante; e aproximei, ainda mais, a minha mão ao meu interlocutor.
- “Veja bem”, disse-lhe,” são quatro.”
- “Custa-me contrariar-te”, respondeu,” mas continuo a ver somente três moedas na mão que me estendes. Não terás a moeda que não vejo, na tua outra mão ou mesmo num dos teus bolsos?”
Sem querer acreditar no que estava ouvindo, pois eu tinha a certeza que eram quatro as moedas que eu trouxera na minha mão cuidadosamente fechada, baixei os olhos, ainda brilhantes de alegria, sobre a mão aberta que as expunha. O coração caiu-me aos pés! Como era isto possível? Sem compreender o que se tinha passado, sem atinar com uma resposta, com a mente em perfeita paralisação, ainda assim olhei para a outra mão e virei do avesso os bolsos. Nada! A minha alegria que era tanta que ameaçara rebentar comigo, tal como um balão rebenta com excesso de ar, deu lugar à mais extrema tristeza; o meu entusiasmo, que me fizera correr, saltar, galgar montanhas, quase voar, que brilhava nos meus olhos como o fogo vivo de uma lareira, apagava-se e agora não era mais do que as cinzas frias do mais angustiante desânimo. E foi assim, com a alma destroçada, com o pensamento paralisado e com o coração oprimido pela mais cruel amargura que, sem saber o que fazia, foi assim, dizia, que fui subindo, penosamente, o íngreme caminho que me levou ao cimo de uma montanha, mesmo à linha de separação das vertentes. Aí chegado, esgotadas que estavam as minhas forças, deixei-me cair entre dois dos inúmeros pedregulhos que, vistos à distância, lembram os dentes de uma serra. E aí fiquei, imóvel, frio, sem um único pensamento, sem nada ver, sem nada ouvir, fechado sobre a minha própria dor – feito uma pedra entre as outras pedras.

O sonho acabou aqui. Acordei tolhido de frio, angustiado, o rosto banhado de lágrimas. A meu lado, a vossa avó Amélia, encolhida e gelada, chorava, de forma aflitiva. Tal como eu, estava a viver um terrível pesadelo. Acordei-a carinhosamente, aconchegando-a entre os meus braços. E assim ficámos, despertos, sem falar, recordando com dorida e infinita saudade aquela pequenina moeda, igualzinha às outras, mas que tilintava de forma diferente.


[Vila do Conde]

FIM