domingo, 9 de outubro de 2011

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações XIII






Escreve

Daniel Teixeira




O MEDO

Uma parte grande das minhas crónicas sobre os meus períodos anuais de estadia na minha infância e juventude - e depois como adulto já de forma esporádica - no Monte de Alcaria Alta têm sido na sua grande parte (ou quase todas mesmo) resultado do facto de ter conhecido o Blogue Alcoutim Livre dirigido pelo amigo que dá pelo pseudónimo de José Varzeano.

O José Varzeano por aquilo que entendo não sendo natural do Concelho de Alcoutim (é de Santarém) para Alcoutim foi trabalhar (seguramente na função pública), por lá casou e pela minha ideia casou em dois sentidos: com uma alcouteneja e com Alcoutim.

Não tenho grandes recordações assim mais antigas de Alcoutim (do meu tempo de jovem) e era mesmo uma terra que algumas vezes evitávamos por razões «técnicas» que posso explicar mais à frente. Por outro lado Alcoutim (Vila) por ser a sede do Concelho era a sede burocrática, a terra da papelada, dos impostos. A Guarda Fiscal facilitava a seu gosto a passagem para San Lucas (como dizíamos) sem passaporte, numa passagem de barco a remos. Nunca lá fui, eu, a San Lucas.

As razões «técnicas» que referi atrás que nos levavam a fugir de Alcoutim eram de ordem «buro – gástrico – emocional». Alcoutim ficava à direita do cruzamento dos Balurcos que era por onde a camioneta seguia vinda de Vila Real de Santo António e chegada aí fazia o caminho em direcção a Alcoutim que fica lá abaixo à beira do Rio Guadiana voltando ao mesmo lugar no seu regresso para seguir então em direcção a Martinlongo.

Nós apeávamo-nos mais à frente dos Balurcos na paragem de Alcaria Alta prosseguidos que eram os restantes 30 Kms sensivelmente que iam de Balurcos a Alcaria Alta - Paragem, esta já perto do cruzamento que levava a Giões.

Pois bem, evitar ir a Alcoutim era uma operação que tinha uma relação forte com o facto de se fazer um intervalo no verdadeiro suplício que era percorrer aquelas estradas de autocarro naquele tempo. Chamavam-se camionetas e havia seguramente uma aposta dos concessionários dos percursos no sentido de mandarem para esses lados os chaços mais antigos e em piores condições que tivessem. O cheiro a gasóleo era praticamente insuportável ao qual se juntava algum cheiro a um vomitado quase inevitável mesmo que a chamada ao gregório fosse feita através das janelas.

[Transporte da época]

Não tenho vergonha de confessar que o desejo de ir à Serra era esbatido pelo medo da indisposição continuada ao fazer o percurso. Dois, três dias antes da partida já se faziam contas à vida e algumas «vacinas» eram efectuadas: estar cinco, dez minutos no terminal da Rodoviária, que era a céu aberto, perto da antiga alfandega, na altura, em Faro, era uma delas. Inspirava-se o máximo que se aguentava o monóxido de carbono e ao lado havia uma sorveteria que servia de consolo intervalar.

Bem se arranjavam mezinhas e todos os anos havia uma nova: a teoria do estômago/copo de água derramando embora fosse impraticável por impossibilidade de manter o «corpo - copo» direito durante o trajecto todo era no entanto bastante coerente e nestas coisas do enjoo, funcionava muito a «fé» na mezinha: uma colher de mel estabilizava, comer só coisas sólidas dificultava a expulsão forçada, enfim...bem se tomavam comprimidos, alguns ditos recém inventados, também, mas era infalível que ao despontar das primeiras curvas o pessoal começava a «olhar» pela janela com a cabeça bem de fora: homens, mulheres, crianças, poucos aguentavam a pedalada.
Ora o repouso nos Balurcos conseguia resolver não o que já se tinha consumido de energia estomacal e vertido mas dava uma folga e ainda nos safava de um verdadeiro emaranhado de estrada em curvas descendentes e depois ascendentes que nos levava e nos trazia de Alcoutim. Naquele tempo se houvesse um prémio para a pior estrada a percorrer eu dava-o ao percurso entre Balurcos e Alcoutim e fazia-o com todo o conhecimento de causa porque conhecia todas as outras, igualmente más, horríveis mesmo.

Durante todos os anos que fiz aquele percurso até sensivelmente aos 14 anos, nas suas diversas variantes possíveis: comboio até Vila Real de Santo António e camioneta depois; directamente de Faro a Martinlongo, comboio e depois barco no Guadiana e depois camioneta, boleia de carro familiar, nunca consegui ultrapassar esse problema. E de repente aconteceu: parou.

[Estrada para Alcaria Alta. Foto JV]

Penso que o facto das estradas terem visto as curvas «cortadas», as baias laterais alargadas e nos afastarem da visão das ribanceiras logo ali ao lado da janela terá contribuído para além da mudança de idade. Os autocarros velhos destinados àqueles percursos também deixaram de ser tão velhos e fanados, enfim...

Uma vez fiz esse percurso com uma tia minha, agora já falecida, teria eu para aí dez anos ou menos. A camioneta chegava à paragem de Alcaria Alta já pelas 22 horas, noite cerrada, grilos e ruídos mais que estranhos. A minha Tia tinha trazido quase uma casa inteira metida em cestos e talegas e optou pela caminhada por lances: levava-me com algumas coisas até um curral, depois a outro e outro, deixava-me lá ficar depois de me tranquilizar e voltava atrás buscar mais coisas as vezes que fossem necessárias.
O ruído da noite quando se tem medo é...assustador. Pelas minhas contas feitas agora em recordação devo ter sido tocado por centenas de bichos esquisitos, rastejado nos pés por cobras, lagartos, ouriços, lacraus.

Fui muito elogiado quando chegámos ao Monte...não tinha chorado nem uma vez. Agora acho que na altura com o medo que tive nem acção tive para isso...
A bênção Ti Bia!