sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações XV





Escreve

Daniel Teixeira




UMA RONDA SEM CASAMENTO

Dentro das minhas recordações das minhas estadias em Alcaria Alta e embora eu seja um defensor tão acérrimo quanto possível das tradições e da rememoração delas há algumas que ainda hoje me fazem sorrir pela máscara quase místico - iniciática que as envolvia comparando-as depois com a sua simplicidade vista agora e vista também logo na altura, ainda que jovem, neste caso.

A «Ronda» por exemplo é uma delas: durante alguns anos, talvez dois, e a partir da altura em que me encontrava já naquele limiar em que eu e os meus amigos íamos crescendo ainda que nos encontrássemos em patamares de um ou dois anos de diferença sendo eu mais novo fui assistindo com alguma frustração ao arranque nocturno destes meus amigos mais velhos para irem fazer uma coisa a que se chamava de «ronda».

Durante esses dois exemplares anos que referi e que não sei se foi exactamente esse o tempo passado nesta situação senti-me diminuído, segregado, ansioso por crescer, embora houvesse também um ou dois amigos na mesma situação que eu que acabavam por ficar a curtir as mágoas comigo. «Eles», os outros, iam para a ronda e não nos levavam e contavam-se então as coisas mais incríveis com alguma conotação apropriada à altura, beijinhos nas meninas, uns abraços mais apertados, enfim.

A efabulação dos maiores (dos que faziam já a ronda) traziam sempre detalhes cada vez mais picantes e silêncios cúmplices e a ânsia de crescer e ter assim direito a fazer a ronda, que era coisa para os mais velhos, para os quase casadoiros, foi crescendo e crescendo até que num ano, talvez tendo eu os meus 14 anos, fui informado a meio da tarde pelo grupo (para aí 10 ou 12 jovens no seu todo) que estava na altura de eu aprender umas coisas e que nessa noite ia com eles fazer a ronda.

Para além de ficar contente por obter assim sem esperar um direito a que ainda não me achava com...direito e quando pensava ter de penar mais uns anos sem conhecer o ritual da ronda fui também esclarecido sobre a necessidade de seguir os passos dos mais velhos que se resumiam praticamente a bater à porta quando elas estavam fechadas, a pedir licença para entrar e tirar o chapéu quando se entrava, a dar as boas noites primeiro ao dono da casa, a seguir à senhora e por fim às filhas e por vezes primas e vizinhas jovens e menos jovens que se juntavam para fazer serão tricotando na sua grande parte.


[Aspecto do monte de Alcaria Alta. Foto de JV]

As moças aprimoravam-se nos arranjos pessoais, isso eu reparei bem, comparando aquilo que ali via com o que via durante as jornadas diárias de trabalho delas, pastoreando os animais, lavando roupa em pedras perto dos poços, regando nas hortas, enfim...eram verdadeiros trajes de quase saída, por vezes com os cabelos bem soltos nos ombros a contrastar com o apertado dos lenços diários.

Ora a ronda no início era uma coisa bem complicada afinal: os moços na sua grande parte eram tímidos e para fazerem a entrada real na ronda da base acabavam por entabular sempre uma conversa por vezes prolongada sobre os trabalhos da lavoura, sobre a chuva e o tempo até quebrar o ambiente e fazer generalizar a conversa. As moças, também tímidas e intimidadas pela presença dos pais e familiares mais velhos praticamente não abriam a boca ou respondiam por monossílabos quando inocentemente questionadas até sobre as cores das meias que tricotavam. Mas havia uma convenção implícita nas «jogadas»...

O dono da casa tinha sempre de ir tratar dos animais e saía ao fim de meia hora, mais ou menos e a dona da casa começava a cabecear com sono logo depois, altura em que as moças não se mostrando mais tagarelas para não fazerem barulho começavam então a olhar para os moços tendo cada uma um deles já escolhido de antemão.

Na sua grande parte aquilo era mais um exercício de aprimoramento técnico na arte de namorar do que propriamente uma possibilidade de namoro ou de casamento para qualquer um dos lados: os filhos dos lavradores iriam infalivelmente casar com uma sua par por amor e conveniência de fortunas e os que não eram lavradores acabariam por partir para a cidade ou para a emigração e que eu me lembre ninguém naquele grupo de cerca de uma dezena constante de moços por lá casou, naquele grupo de jovens que visitávamos.

O Manelito Vilão que ainda fazia na altura parte do nosso grupo acabou por casar com uma alegadamente ricaça de Malfrade, salvo erro, mas era para aqueles lados que a gente o via partir tempos depois, aos fins de semana, cavalgando a galope uma mula bem arreada com sela e de esporas. Era uma mula de trabalho do dia a dia mas parecia mesmo outra, de crinas aparadas e recortes artísticos de tosquia junto à cauda. Eles tinham uma égua, um bonito animal, que eu ainda montei algumas vezes, mas estava já bastante velha para os longos percursos da exibição amorosa.

De esclarecer que se chamava ronda porque por vezes era mesmo uma ronda pelo monte : algumas vezes encontrávamos portas onde nos diziam que já estava tudo recolhido (isto lá pelos oito nove da noite) e tínhamos de calcorrear mais um pouco até encontrar o tipo de guarida desejado.

Eu não tinha par mas acabei por mostrar a minha utilidade nas mais ou menos demoradas introduções rituais. Na sua grande parte todos aqueles grupos de moças queriam era ir para a cidade, fosse ela qual fosse, queriam debandar dali e em certo sentido se não fosse a atracção pelo namorico sem consequências acho até que elas teriam já algum horror consciente em encarar a sério a possibilidade de casarem ali e por ali ficarem por mais simpáticos ou atractivos que fossem os pretendentes.

Ora eu «dominava» o tema cidade ali, era o especialista e fornecia o meu manancial informativo, respondia às perguntas por vezes quase estúpidas que me eram feitas, enfim...enchia assim o tempo e quebrava o gelo circunstancial embora por vezes a conversa viesse a ocupar espaços de tempo não desejados prolongando-se alguns minutos para além do cabecear ensonado da dona da casa e retardando a partida para tratar dos animais do dono da casa.

Era isso a ronda...a famosa ronda: a única coisa mais elaborada que vi ainda foi um apertão nos seios de uma moça numa providencial passagem para recolher brasa para o cigarro na lareira e mais um abraço apertado com «chega para lá» numa saída já cá à porta quando a dona da casa dormia a sono solto.

Já dentro da geração anterior em Alcaria Alta, por aquilo que era fácil saber, eram raros os casamentos do pessoal do monte entre si. Havia relações familiares por vezes chegadas entre os habitantes locais o que retirava logo uma fatia grande de possibilidades e uma quase imperceptível hierarquia regulada pela posse, mesmo que ela fosse pouca de uma forma geral.

Das minhas duas tias (uma outra faleceu com cerca de vinte anos) nenhuma delas se mostrou tentada a ficar por lá, tal como a minha mãe, o mesmo acontecendo com a multidão de primos e primas que uma família com seis matriarcas (avó e tias avós) produziu.

Houve ainda um tio que partiu cedo para trabalhar nas oficinas de material de guerra cuja parte na propriedade familiar eu nunca conheci nem soube o que foi feito com ela acreditando que tenha sido dividida entre as irmãs por algum acordo que desconheço. Este meu tio-avô só vim a conhecê-lo já na parte final da sua vida, chamava-se Eurico, nome pouco vulgar e pouco usado por aqueles lados. Reformado, viúvo e sem filhos depois acabou por vir bater a Faro, casando com uma senhora daqui, em casamento «arranjado» pela minha mãe e minhas tias. Excelente senhora, esta minha episódica tia que foi mulher de um tio que eu nem sabia existir e que só vim a conhecer já pelos meus 16/18 anos.

Conforme disse os casamentos de homens e mulheres de Alcaria Alta tinham lugar fora de Alcaria Alta e nos casos em que isso acontecia, quer dizer quando as pessoas acabavam por casar na zona, havia sempre a mira implícita de arranque conjunto ou para uma cidade ou para a emigração isto ao nível dos não lavradores.

[Aspecto do monte de Lutão de Cima. Foto JV]

Aqueles que tinham posse substancial a preservar conservavam-se no concelho, de uma forma geral, embora o poder de atracção dessas fortunas não fosse suficiente por vezes para manter o pessoal por lá: um filho de um lavrador acabou por ir para a GNR por exemplo o que foi muito comentado na altura por não ser considerada uma opção ao nível da sua fortuna. O percurso por via das habilitações escolares na altura só tinha chegado a um filho, o mais novo, que acabou por falecer no Ultramar como Furriel.

Eu ouvia falar dos antigos bailaricos no Monte e perguntava-me o que tinha acontecido a essa vida que me era apresentada como foliona e como potenciadora de criação de famílias inter - montes. Não conheci já nada disso (salvo um baile no armazém da Ti Inácia) mas foi-me apontada a então casa da Ti Chica como tendo servido para bailes antes de ser a sua morada e por aquilo que a minha mãe me contava havia bastantes bailes no tempo da sua juventude e infância.

Aconteceu sim, no meu tempo já, um rapto (para efeitos de casamento) que ficou na memória pelo já desfasado no tempo e por um curioso acontecimento. Um jovem do Monte uma noite foi raptar a namorada ao Lutão, naquele tempo já de motorizada. Embrenhado na condução e desejando chegar a Alcaria Alta o mais rápido possível não se terá dado conta que a jovem tinha tombado da motorizada num ressalto do terreno.
Ela ficou bem, ficou tudo bem, ele acabou por aperceber-se, quilómetros à frente, do sucedido mas foi durante muito tempo impossível olhar para ele ou para ela sem que ficássemos com uma forte vontade de rir...