quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações XIV




Escreve

Daniel Teixeira



OS ANIMAIS

Animais, em Alcaria Alta, por aquilo que fui entendendo, e talvez não fosse e não seria mesmo em termos lógicos diferente noutros sítios serrenhos, eram, os animais, medidos pelo seu grau de utilidade. O conceito de animal de estimação era dividido entre a ideia da utilidade do animal acrescentado pelos relatos das suas proezas ou manifestações da sua esperteza.

Por exemplo, a minha avó tinha cerca de uma dezena de gatos e por isso não havia ratos, nem lagartixas entradas pelas pedras e poiais, nem osgas esgueiradas pelas inúmeras frestas das casas, frestas estas que inventariaria começando logo em cima das nossas cabeças, na cobertura interior (hoje chama-se de forro), feita de canas atadas entre si, o chamado caniço.

Os gatos estavam na sua grande parte apenas presentes às horas das refeições roçando-se pelas nossas pernas e miavam e como eles miavam, era uma verdadeira des – sinfonia. Eram corridos mas voltavam logo: era praticamente impossível controlar todo aquele «rebanho». No inverno eram verdadeiros gatos borralheiros aquecendo-se perto das brasas e das cinzas. A maior parte das vezes íamos encontrá-los nas redondezas da casa, muitas vezes mesmo de barriga ao sol outras de mira paciente em algo que andasse por ali e lhes fornecesse algumas proteínas.

A minha avó gostava muito de uma gata, contudo, e contava dela uma proeza que deve conter alguma coisa de fábula evidente, mas vindo da minha avó, uma mulher rija e de poucos carinhos acaba por valer ainda mais: uma noite cansada de a ouvir miar (alguns tinham direito a dormir aos pés da cama) tinha-lhe jogado um sapato e gritado que «se tinha fome que fosse caçar». Deixou-se dormir e depois acordou com ruídos estranhos vindos do buraco na parede por onde os gatos entravam e saíam daquele quarto directamente para a rua. Levantou-se e foi dar com a gata arrastando uma lebre «tinha ido mesmo caçar, como ela lhe dissera!».

De acrescentar que por experiência própria sei que acontece por vezes encontrarem-se lebres que por uma razão ou outra não correm, deixando-se antes ficar escondidas atrás de ervas ou ramagens. Com os meus amigos «tínhamos» um cão pequenito que era especialista no farejo e que levantava a caça para os galgos que mais que uma vez abocanhou coelhos e lebres nestas situações e nem de outra forma poderia ser porque em corrida não dava para meia gaitada.

De quando em vez uma destas gatos apanhava a porta aberta ou o postigo e saltava para cima da mesa que normalmente apenas tinha miolos de pão e outras vezes um bocado de queijo ou de courato do presunto esquecido sobre o tampo. Não se comia propriamente na gaveta mas era de rápido regresso à gaveta aquilo que compunha um pequeno almoço (lá chamado de almoço) ou de um lanche (lá chamado de jantar).A refeição mais forte era a ceia, à hora do nosso jantar citadino. A comida para animais não era abundante porque não eram também abundantes os restos.

Ora um dia fui à pesca, à lapa, como lhe chamávamos, com o meu primo José Francisco. Tratava-se de meter as mãos nos buracos nas paredes à volta dos pegos e entre as pedras do fundo (as lapas) e apanhar à mão o que conseguíssemos. Normalmente apanhava-se bastante peixe nestas condições mas havia um senão que eram as cobras. Cobras de água não fazem qualquer mal mas eu sempre tive as minhas reticências e o tradicional nojo destes animais.

[Um pego da região. Foto JV, 2010]

Dias antes tinha também andado numa pescaria dessas com os meus amigos na ribeira e acabámos por apanhar uma gorda eiró que a mim pouco me parecia ter de eiró. Foi uma sensação de suspeita devido à grossura do bicho: as eirós que conhecia eram para o magrinho, esguias, escorregadias como tudo. Ora aquela estava isolada numa poça de água que acabámos por vazar à força de balde e era extraordinariamente grossa. Nunca pensei a 100% que fosse uma cobra mas também não fiquei convencido a 100% de que era um eiró pelo que me abstive no repasto optando sadiamente a meu ver por uma lata de conserva.
Eles bem me diziam que se fosse cobra não comiam, isso era evidente para eles, mas os conhecimentos deles e meus sobre a fauna aquática remavam para os dois sentidos: podia não ser cobra e podia ser cobra e eles não saberem exactamente. Fizeram a assada na maior e eu de latinha de conserva à frente. No mesmo dia foi nascendo em mim a convicção de que pesca à lapa não era definitivamente para mim...eu sempre pesquei é linha na minha cidade nos pontões e cais porque razão iria andar por ali a mexer em cobras ainda por cima para apanhar um peixe de que não gostava nada por causa da profusão de espinhas?

Na verdade e para quem não sabe o peixe de rio (muge) tem uma consistência espinal elevada por centímetro quadrado: é um frete comer aquele peixe. Ora a pescaria com o meu primo foi logo combinada por ele para um dia ou dois depois de eu ter visto eles comerem a eiró /cobra e não era uso baldarmo-nos a convites destes especialmente vindos do meu primo e sapateiro gratuito.

Para além disso a mulher dele, minha tia/prima, era uma jóia de pessoa sempre. Ainda vive e eu pouco lhe tenho falado ultimamente o que lamento sinceramente. Esteve doente em minha casa enquanto fazia tratamentos no Hospital de Faro a um problema hormonal mas não era de encostos e trabalhava em nossa casa tudo aquilo que havia a fazer. Quando a minha mãe se ausentava era a ela que recorríamos. Por várias razões o meu primo, que era natural do Zambujal, não tinha entrado bem na família alargada. Era respeitado sim mas relativamente pouco aceite.

Eu achava estranho essa falta de integração mas tenho a impressão que o sentido de humor dele não se ajustava muito à seriedade local acabando algumas vezes as fábulas dele por serem levadas a sério tal a convicção que metia nos relatos. Bem, isto para dizer que estava fora de causa uma recusa à pescaria. Pelo caminho pelo sim pelo não fui-lhe contando os eventos que tinha vivido dois dias antes, para já à beira do pego, lhe dizer que se a primeira coisa a entrar-me na mão fosse cobra parava logo ali a minha função. E foi isso que aconteceu...saiu cobra.

Sentei-me numa pedra enquanto assistia a uma afanosa pescaria porque o pego era farto. No dia a seguir e conforme combinado fui um pouco a contragosto para comer o peixe que ele tinha apanhado e fui então no local informado que peixe não havia, que um gato tinha conseguido chegar ao cesto elevado por corda atada a um barrote do tecto e tinha comido tudo. Nem foi preciso olhar bem para o olhar encolhido da minha tia para perceber tudo.

O homem dispunha sempre... e no fundo tinha toda a razão...mas podia sempre ter-me mandado recado sobre o «afoito gato» poupando-me a deslocação.