quarta-feira, 4 de abril de 2012

Lisboa - Paris por cinco contos de réis [2]






Escreve

Amílcar Felício



E lá partiram acelerados no carro do “passador” pela Avenida de Ceuta adiante direitos à Avenida da República, para apanharem a auto-estrada do Norte. Armando e Faustino deixavam assim irremediavelmente para trás o Largo de Alcântara e aos poucos e poucos, era Portugal inteiro que lhes ia desaparecendo debaixo dos pés em direcção a um destino, que nem eles próprios tinham ainda definido exactamente qual seria.

Uma das hipóteses que consideravam plausível era assentar arraiais na Suécia pelo menos numa primeira fase, pois para além de terem consciência plena de que iriam ajudar a criar o efeito de mancha como veremos adiante, existia da parte deles uma certa simpatia e curiosidade por aquele país progressista verdadeiramente social-democrata. Na realidade comentava-se nos meios militares da altura à boca pequena mas com grande cumplicidade, a deserção “em massa” de um conjunto de mais de meia dúzia de Oficiais do Quadro de patente elevada – caso inédito até então, visto que só os milicianos desertavam – e que tinham sido extraordinariamente acarinhados e bem recebidos pelo governo social-democrata de Olof Palme com entrevistas televisivas inclusive.

De facto colocando-se sem rodeios nem diplomacias balofas ao lado da luta dos Povos das Colónias e dos seus Movimentos de Libertação mais genuínos, o governo sueco isolava com esta sua tomada de posição ainda mais o regime colonialista e a ditadura salazarista, tornando-se no contexto da Europa da altura, num apoio importantíssimo e de uma clareza sem precedentes a nível oficial! Na realidade “badalando” aos quatro ventos quer aquele acontecimento quer alguns dos massacres (1) em massa de civis nas colónias que começavam a ser conhecidos, faria com que a situação política portuguesa desse brado por essa Europa fora, mostrando à evidência os primeiros indícios de insatisfação e desagregação do Exército e a natureza do próprio regime salazarista.

Salazar começava a colher os dividendos, das medidas que entretanto fora obrigado a introduzir no Exército, provocando inclusive alguma fricção no seio do seu sector mais conservador. Na realidade com o desenvolvimento da guerrilha e a necessidade da presença militar cada vez maior nas colónias para lhe fazer frente, começava-se a fazer sentir sobremaneira a falta de quadros militares. Este défice de quadros levaria o regime ao longo da década de sessenta a promover a entrada de Oficiais Milicianos para o Quadro Profissional, aliciando-os com promoções e uma ascensão na hierarquia militar sem qualquer limite de posto, como acontecia até então.

Naturalmente que aqueles Oficiais em contacto com os militares de carreira, a maior parte deles provindo dos meios universitários – um dos sectores mais politizados da sociedade portuguesa de então – iria questionar decisivamente a própria mentalidade militarista e patrioteira reinante, abrindo-lhe novos horizontes e colocando-lhe novos pontos de vista. As consequências seriam ainda mais visíveis alguns anos mais tarde, numa já longínqua madrugada de Abril de 1974. Era a factura a pagar obrigatoriamente.

Mas na realidade quer na cabeça de Armando quer na cabeça de Faustino, nada estava verdadeiramente definido. Até à Suécia eram quase 4000 quilómetros que teriam que palmilhar e nesse longo percurso havia muito tempo para pensar no assunto. Agora o mais importante era dar o salto, ter o pé ligeiro e abrir a pestana o mais possível para se porem a salvo, pois sabiam que corriam o risco de uma boa meia dúzia de anos de prisão caso fossem apanhados. Diga-se de passagem que estavam em plena forma e preparados para o que desse e viesse!



Passaram pelo Saldanha e a pouco mais de 50 metros já na Avenida da República, apanharam o primeiro sobressalto. O “passador” dominava mal o trânsito na cidade e meteu-se na faixa de rodagem errada. Por ordem do Polícia Sinaleiro este obrigava-o com uma sinfonia impressionante de apitos a virar à esquerda. Desobedecendo àquela ordem, o “passador mete o prego a fundo” mandando o Polícia em alta voz para o “...alho” e prosseguindo a alta velocidade pela Avenida fora, como se nada tivesse acontecido. Armando olha para trás e observa preocupado o Sinaleiro a tomar nota da matrícula da viatura. Ficou apreensivo naturalmente. Receava que uma comunicação via rádio para uma Brigada de Estrada deitasse tudo a perder. Foi a primeira vez que se empinou com o “passador” perguntando-lhe com cara de poucos amigos se tinha consciência do risco que estava a fazer correr quer a ele quer ao amigo.



O “passador” homem de acção e de palavra fácil tentava acalmar Armando: “não se preocupe, este é o meu trabalho, sei bem o que estou a fazer esteja descansado...” Este incidente teve contudo um grande mérito pois fez cair Armando no erro que estava a cometer. Efectivamente na sua preocupação conspirativa de passar despercebido de tudo e de todos, Armando tinha guardado toda a sua documentação militar e civil por baixo das palmilhas dos sapatos. Caiu em si naquele momento arrepiando-se das consequências nefastas, se lhe pedissem a identificação numa operação stop. Ocorreu-lhe até de imediato que o Bilhete de Identidade de Oficial lhe poderia dar um jeitão e proporcionar-lhe melhores condições para se impor mais facilmente à autoridade se tal viesse a acontecer, o que não teria qualquer pejo em fazer naquelas circunstâncias.



Mas tudo correria às mil maravilhas até Coimbra aonde pararam na bomba de gasolina para atestar o depósito da viatura. Enquanto o “passador” tratava do assunto, Armando no banco de trás aproveitava aquele intervalo para se abstrair de tudo e ganhar nova energia e concentração para o resto da viagem, eis quando vê Faustino sair do banco da frente rastejando, vindo deitar-se precipitadamente aos seus pés. “Mas o que é que se passa pá”, pergunta-lhe Armando? “É pá, o meu Comandante está ali no carro da frente e ainda anteontem lhe fui pedir dispensa de uma semana para ir para Lisboa por causa da minha mãe que estava a morrer e agora vou para aqui disparado para o norte! Se ele me vê é uma grande bronca, pois vai desconfiar da marosca!” Tem calma Faustino continua aí deitado, diz-lhe Armando, que eu vou discretamente para o banco da frente que ele não me conhece e faço-te a cobertura enquanto não anoitece.



E assim continuaram a viagem até ser noite, Armando no banco da frente e Faustino deitado no banco de trás evitando que uma casual ultrapassagem posterior, permitisse qualquer reconhecimento. Mas todos estes incidentes de percurso tinham sido apenas o aquecimento para os maiores sustos que ainda estavam para vir dali para a frente, como veremos no próximo episódio.

(CONTINUA)

(1) Armando chegou a ter “aulas” de Acção Psicológica em que alguns Oficiais Instrutores “ensinavam” que para acabar com a guerrilha, era necessário fazer o mesmo que os franceses tinham feito na Argélia nos finais da década de cinquenta: por cada soldado francês morto, vai-se à aldeia mais próxima e liquida-se todos os aldeãos.

Mas pelos vistos nem assim resultou nem num lado nem no outro.