Escreve
Daniel Teixeira
A MOURA ENCANTADA DO
MEU AVÔ
O meu avô era aquilo que eu hoje defino como sendo «um velhote porreiro». Nunca se zangava (a não ser com as teimosias dos burros) e a única vez que o vi exaltado foi quando recebeu o aviso do pagamento das contribuições com um valor superior ao habitual: a diferença era pequena, ao que me lembro, um escudo e meio a mais que nos anos anteriores mas o velhote ficou fulo mesmo e não se cansou de propagandear e contestar junto dos outros aquilo que considerava ser uma injustiça.
Era uma injustiça, entendia ele, e deveria entender segundo
a minha lógica porque cada vez tirava menos da exploração das terras e não era
normal que quanto menos se ganhasse mais se pagasse de impostos.
Ainda arranjou uns quantos lesados como ele na roda, tiveram
exaltados conciliábulos mas tudo ficou por ali, pelo protesto sem consequências
e tal como hoje uma parte das festas e festarolas foram sendo pagas pelos meus
avós e outros que realmente produziam, que trabalhavam no duro as suas terras,
de sol a sol como se costuma dizer.
«Pitos e flaitas» pagos com pelo menos uma parte do suor e
das frustrações daqueles que arrancavam da terra produções miseráveis de seis,
sete sementes, que levavam dias na debulha, com os pobres dos animais ali às
voltas para soltar o trigo da espiga, que batiam quando era o caso a palha
durante horas de enfiada com paus.
Estes paus eram verdadeiros troncos, polidos pelo uso, para
aí com dez centímetros de diâmetro e um metro de comprido, pelo menos, com um
cabo em punho que fazia articulação por via de uma corda intermediando.
Trabalhavam quase frente a frente, dois a dois, cruzando as batidas para
arrancar o centeio ou a cevada. Levavam nisso horas com curtos intervalos para
beber água. Eu não tinha ainda capacidade de «ler» nas entrelinhas dos gestos
mas agora acredito que muitas daquelas porradas na palha e no solo das eiras
foram dadas com raiva, com aquela revolta surda de quem vê literalmente a vida
a andar para trás.
«O trabalho do campo ainda está muito conotado com a
escravatura» disse eu um dia a uma pessoa falecida que muito respeitei e
respeito: «Pois é preciso acabar com isso!» - respondeu-me. Infelizmente,
professor, essas coisas não acabam por decreto ou porque se diz. E o pessoal
continuava trabalhando a troco da alimentação e sabia que quanto menos
trabalhasse ou quanto mais tempo estivesse doente menos comia. Restava-lhe como
«consolo» terem propriedade, serem nominalmente proprietários...proprietários
de um quase nada que nada dava, afinal.
Depois era levar a semente ao moleiro: no meu tempo já não
havia moinhos por ali mas havia a moagem em Martinlongo, assim como um lagar.
Ainda vi uma vez logo antes do fecho fazer azeite, com água quente e sacos de
juta. O lagar do Monte pelo que percebi era dos lavradores Tomás e tal como em
todas as coisas era preciso pagar uma quota parte. Na plantação de trigo e
outros cereais em terreno de outro era um terço da colheita, no lagar não sei.
Era uma enfiada de tanques com lajes inclinadas tipo tanques caseiros com um
meio canudo acimentado abaixo por onde escorria a água e o azeite: nunca se
misturam e é verdade.
Há mesmo coisas que nem devem misturar-se nunca: o trabalho
de quem trabalha e os tais «pitos e flaitas» de quem goza com o resultado do
trabalho dos outros. E naquele Monte havia quem dissesse que Deus era grande
para aquela gente pequenina...talvez fosse, talvez seja, mas não se fazia
notar.
O meu avô esmagando as azeitonas, a escorrer até ao limite o
suco da oliva, a mirar bem o bagaço, a recuperar bago a bago para o saco alguns
frutos que «ainda davam», ia-me dizendo então:
«Uma vez estive para ficar por lá, num outro mundo, estive
para sair daqui...mas não podia voltar nunca mais.» O curioso nesta história
que o meu avô me contou e que devia fazer parte do imaginário comum é que as
pessoas em qualquer ponto onde estejam têm sempre a possibilidade de optar. Em
certo sentido podem optar entre duas formas de prisão, como o meu avô me
contou, porque quando se está preso a uma vida miserável o sonho não pode ser
senão ironicamente inalcançável. Um sonho que tem um preço tão alto como a vida
que se tem.
Moura encantada. Des. de Francisco Sánchez |
Ouviu ele o som de guizos e apareceu-lhe uma luz, uma noite
em que guardava gado nos pastos. Viu uma figura de mulher e aproximou-se: era
uma moura (encantada como é sempre), de roupas brilhando ao alumiar da luz que
vinha de uma larga abertura no inclinado do solo. Tinha um lenço a tapar-lhe a
face mas tinha uns olhos lindos, como me contou o meu avô e falou-lhe,
disse-lhe que a seguisse. Entraram pela abertura no solo, mais alta que dois
homens e tão larga como um portão de ferro.
Lá dentro corria abundante água numa fonte e as paredes
estavam decoradas a ouro. Em caixas de madeira viam-se todas as riquezas que o
meu avô nem sabia que existiam: pedras brilhantes (brancas, como vidro - eram
diamantes avô) outras vermelhas (eram rubis avô) e muitas moedas de ouro
transbordando de baús. Não era sonho não, afiançou-me...foi mesmo verdade. Mas
não podia trazer nada, disse-me a moura.
Tinha de ficar lá para gozar aquelas riquezas: uma vez por
ano a gruta encantada abria-se em qualquer lugar por esses montes e podia vir
cá fora ver o mundo, mas só uma noite por ano, como acontecia com ela. Uma só
noite por ano...mas não teria fome nunca. A água que corria era alimento
suficiente.
«Nada mais de arado, de enxada, de debulha, de monda, de
arrancar estevas - acabava-se tudo. O que havia ali bastava para tudo...Estive
para ficar...estive mesmo.» - disse-me a acabar com aqueles olhos
expressivamente tristes de quem não sabe mesmo porque não ficou.
Deixa avô...não penses mais nisso...