domingo, 24 de junho de 2012

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações - XXX

Escreve

Daniel Teixeira




A MOURA ENCANTADA DO MEU AVÔ

O meu avô era aquilo que eu hoje defino como sendo «um velhote porreiro». Nunca se zangava (a não ser com as teimosias dos burros) e a única vez que o vi exaltado foi quando recebeu o aviso do pagamento das contribuições com um valor superior ao habitual: a diferença era pequena, ao que me lembro, um escudo e meio a mais que nos anos anteriores mas o velhote ficou fulo mesmo e não se cansou de propagandear e contestar junto dos outros aquilo que considerava ser uma injustiça.

Era uma injustiça, entendia ele, e deveria entender segundo a minha lógica porque cada vez tirava menos da exploração das terras e não era normal que quanto menos se ganhasse mais se pagasse de impostos.

Ainda arranjou uns quantos lesados como ele na roda, tiveram exaltados conciliábulos mas tudo ficou por ali, pelo protesto sem consequências e tal como hoje uma parte das festas e festarolas foram sendo pagas pelos meus avós e outros que realmente produziam, que trabalhavam no duro as suas terras, de sol a sol como se costuma dizer.

«Pitos e flaitas» pagos com pelo menos uma parte do suor e das frustrações daqueles que arrancavam da terra produções miseráveis de seis, sete sementes, que levavam dias na debulha, com os pobres dos animais ali às voltas para soltar o trigo da espiga, que batiam quando era o caso a palha durante horas de enfiada com paus.

Estes paus eram verdadeiros troncos, polidos pelo uso, para aí com dez centímetros de diâmetro e um metro de comprido, pelo menos, com um cabo em punho que fazia articulação por via de uma corda intermediando. Trabalhavam quase frente a frente, dois a dois, cruzando as batidas para arrancar o centeio ou a cevada. Levavam nisso horas com curtos intervalos para beber água. Eu não tinha ainda capacidade de «ler» nas entrelinhas dos gestos mas agora acredito que muitas daquelas porradas na palha e no solo das eiras foram dadas com raiva, com aquela revolta surda de quem vê literalmente a vida a andar para trás.

«O trabalho do campo ainda está muito conotado com a escravatura» disse eu um dia a uma pessoa falecida que muito respeitei e respeito: «Pois é preciso acabar com isso!» - respondeu-me. Infelizmente, professor, essas coisas não acabam por decreto ou porque se diz. E o pessoal continuava trabalhando a troco da alimentação e sabia que quanto menos trabalhasse ou quanto mais tempo estivesse doente menos comia. Restava-lhe como «consolo» terem propriedade, serem nominalmente proprietários...proprietários de um quase nada que nada dava, afinal.

Depois era levar a semente ao moleiro: no meu tempo já não havia moinhos por ali mas havia a moagem em Martinlongo, assim como um lagar. Ainda vi uma vez logo antes do fecho fazer azeite, com água quente e sacos de juta. O lagar do Monte pelo que percebi era dos lavradores Tomás e tal como em todas as coisas era preciso pagar uma quota parte. Na plantação de trigo e outros cereais em terreno de outro era um terço da colheita, no lagar não sei. Era uma enfiada de tanques com lajes inclinadas tipo tanques caseiros com um meio canudo acimentado abaixo por onde escorria a água e o azeite: nunca se misturam e é verdade.

Há mesmo coisas que nem devem misturar-se nunca: o trabalho de quem trabalha e os tais «pitos e flaitas» de quem goza com o resultado do trabalho dos outros. E naquele Monte havia quem dissesse que Deus era grande para aquela gente pequenina...talvez fosse, talvez seja, mas não se fazia notar.

O meu avô esmagando as azeitonas, a escorrer até ao limite o suco da oliva, a mirar bem o bagaço, a recuperar bago a bago para o saco alguns frutos que «ainda davam», ia-me dizendo então:

«Uma vez estive para ficar por lá, num outro mundo, estive para sair daqui...mas não podia voltar nunca mais.» O curioso nesta história que o meu avô me contou e que devia fazer parte do imaginário comum é que as pessoas em qualquer ponto onde estejam têm sempre a possibilidade de optar. Em certo sentido podem optar entre duas formas de prisão, como o meu avô me contou, porque quando se está preso a uma vida miserável o sonho não pode ser senão ironicamente inalcançável. Um sonho que tem um preço tão alto como a vida que se tem.

Moura encantada. Des. de Francisco Sánchez

Ouviu ele o som de guizos e apareceu-lhe uma luz, uma noite em que guardava gado nos pastos. Viu uma figura de mulher e aproximou-se: era uma moura (encantada como é sempre), de roupas brilhando ao alumiar da luz que vinha de uma larga abertura no inclinado do solo. Tinha um lenço a tapar-lhe a face mas tinha uns olhos lindos, como me contou o meu avô e falou-lhe, disse-lhe que a seguisse. Entraram pela abertura no solo, mais alta que dois homens e tão larga como um portão de ferro.

Lá dentro corria abundante água numa fonte e as paredes estavam decoradas a ouro. Em caixas de madeira viam-se todas as riquezas que o meu avô nem sabia que existiam: pedras brilhantes (brancas, como vidro - eram diamantes avô) outras vermelhas (eram rubis avô) e muitas moedas de ouro transbordando de baús. Não era sonho não, afiançou-me...foi mesmo verdade. Mas não podia trazer nada, disse-me a moura.

Tinha de ficar lá para gozar aquelas riquezas: uma vez por ano a gruta encantada abria-se em qualquer lugar por esses montes e podia vir cá fora ver o mundo, mas só uma noite por ano, como acontecia com ela. Uma só noite por ano...mas não teria fome nunca. A água que corria era alimento suficiente.

«Nada mais de arado, de enxada, de debulha, de monda, de arrancar estevas - acabava-se tudo. O que havia ali bastava para tudo...Estive para ficar...estive mesmo.» - disse-me a acabar com aqueles olhos expressivamente tristes de quem não sabe mesmo porque não ficou.

Deixa avô...não penses mais nisso...