Eram 3 horas da manhã.
Truz...truz... truz..., alguém batia bruscamente à porta do
casebre. Armando, Faustino e os novos companheiros de viagem acordavam meio
estremunhados e com algum nervosismo à mistura provocado pelo batuque, mas nem
o barulho de uma pena se ouvia dentro daquele casebre bolorento! Apesar do
sobressalto, calculavam que certamente seria a “rapariga” que os iria conduzir
na travessia da fronteira como tinha sido combinado com o passador e leva-los
até à primeira aldeia espanhola, para apanharem a camioneta para Ourense que
partia às 6 horas da manhã. Espreitaram cautelosamente por uma fresta da porta.
Depois de desfeitas as dúvidas mas ainda antes de abrir a porta,
perguntaram “quem é (?)” não fosse o Diabo tecê-las.
“Vá lá despachem-se, que ainda temos muito que palmilhar
(!)”, responde uma voz feminina. Não havia qualquer dúvida de que era ela.
Puseram-se em pé rapidamente, tiraram uma ou outra ramela que mal tinha tido
tempo de se formar naquelas 2 ou 3 horas de sono e ficaram desde logo
aperaltados e a rigor, prontos para a viagem, pois tinham dormido vestidos e a
pouca “bagagem” nem sequer tinha saído do saco de plástico.
“Bom Dia (!)” disseram eles mal abriram a porta. “Bom Dia”
responde a “rapariga” ao mesmo tempo que disparava apressada mais uma vez:
“Vamos lá a despachar-nos que não temos muito tempo e se encontrarmos os
Carabineiros pelo caminho, a gente não se conhece ouviram! Vocês têm que dizer
que vão trabalhar para Ourense aonde já têm trabalho e como eu ia à aldeia,
pediram-me se podiam ir comigo para apanhar a camioneta pois não conheciam o
caminho”. E assim num ápice punha o rabinho de fora de qualquer
responsabilidade...
Já em marcha acelerada
Armando aproximou-se discretamente da “rapariga” e perguntou-lhe: “conhece a
nossa situação?”. “Eu cá não sei de nada, têm é que dizer se eles aparecerem,
que a gente não se conhece e como vão trabalhar para Ourense pediram-me se
podiam ir comigo até à aldeia para apanhar a camioneta”. Armando ainda insistiu
mais uma vez, mas era como chover no molhado pois recebia sempre a mesma
resposta “a gente não se conhece já lhe disse e vocês vão trabalhar para
Ourense...” Não havia mais nada a fazer senão “pontapé para a frente e fé em
Deus”, pelo menos para aqueles que acreditassem nos seus serviços.
Cidade de Ourense |
Não encontrariam ninguém àquela hora da madrugada e assim
chegaram à aldeia ao fim de quase 3 horas por caminhos tortuosos, que nem
lembraria ao Diabo percorre-los. Fizeram a entrada na aldeia como se fossem
actores de um filme de bandidos no Faroeste. A “rapariga” à frente a correr em
ziguezague de esquina em esquina e os outros atrás dela em bichinha de pirilau
à moda da tropa, lá se iam internando na povoação até avistarem finalmente o
largo da aldeia aonde já se via a camioneta e algumas pessoas em redor.
Misturaram-se com o povo na sua ânsia de passarem despercebidos e de não darem
nas vistas. A “rapariga” levaria sumiço pouco depois desaparecendo para sempre,
possivelmente depois de ter falado com o cobrador.
Eis que chega um Carabineiro, colocando-se atrás da pequena
multidão e provocando naturalmente algum mal estar entre Armando e os
companheiros. Quando Armando punha o pé no primeiro degrau da camioneta para
subir, ouve alguém gritar: “mira usted, llega aqui hombre!”. Armando olha para
trás e vê o Carabineiro com o dedo apontado na sua direcção e lá vai com o
rabinho entre as pernas ao pé dele já com a cabeça a pensar em espanhol “porqué
yo me cago en Diós (?)” aparentando uma calma que na realidade não existia.“Qué pasa hombre” pergunta-lhe Armando tomando a iniciativa
para mostrar alguma tranquilidade e puxando do mais fundo das entranhas pelo
seu melhor espanhol “coño”. “Entonces y para donde vás mira?” pergunta-lhe o
Carabineiro ao que ele responde: “pués mira, voy a trabajar para Ourense y
hasta ya tengo trabajo hostia” . “Entonces sigue y que tengas suerte!”
retorquiu o Carabineiro. “Gracias Señor” responde-lhe Armando subindo
sorrateiro para a camioneta.
Mal a camioneta se pôs em marcha a Senhora que a eles se
tinha juntado na noite anterior, parecia outra mulher mais solta e descontraída
transpirando uma liberdade no olhar e nas palavras, que ainda não se lhe tinha
visto. Com o seu instinto maternal perguntava insistente e descontraidamente
para Armando “não querem também um bocadinho de pão com chouriço (?), vá comam lá
que já devem estar com fome”! Armando arrepiado abanava a cabeça que não, pois
falar português naquele contexto era dar muito nas vistas, ainda por cima com o
Carabineiro mesmo ali atrás dele e sabia-se lá quem mais andaria por ali... Mas
a Senhora não desistia da oferta: “vá comam lá, que já devem estar com fome...”
Aí Armando lá agarrou na bucha para acabar o diálogo o mais rapidamente
possível, mas o que tinha mesmo era ganas de lhe apertar o pipo para ver se o
raio da mulher se calava de vez.
Mas a viagem correria paulatinamente. O cobrador na sua
azáfama habitual lá ia de passageiro em passageiro fazendo o seu serviço de
cobrança rotineira. Quando passava por Armando e pelos companheiros de viagem
parecia que nem os via e nem lhes dirigiu uma palavra sequer. Este compadrio e
conivência descarada transmitia uma enorme confiança a Armando, que começava a
sentir-se seguro no meio daquela organização invisível. Pensava para os seus
botões: “mas como é possível gerar uma engrenagem destas tão certinha e desta
dimensão internacional à luz do dia nas barbas de toda a gente e que nem ele
próprio percebia muito bem os contornos? Caramba quando um povo quer, ninguém o
consegue vergar!”
E lá chegaram ao terminal de camionagem em Ourense sem
qualquer incidente de percurso. Mal saíram da camioneta alguém se lhes dirigiu
dando-lhes uma trouxa a cada um com umas sandes e informando-os de que a
camioneta para Paris sairia dali às 17 horas certas. E por ali continuaram
fumando uns cigarros e fazendo horas não fosse haver alguma alteração de
percurso, pois sabiam que haveria sempre por ali algum Anjo da Guarda qualquer
que olhava por eles e que os informaria de uma eventual mudança.
Sem atrasos de maior às 17 horas Armando e Faustino entravam
para a camioneta e estavam de partida para o seu último percurso da viagem. Era
uma camioneta cheia de portugueses e espanhóis, gente que ia à procura de uma
vida melhor certamente e que quer Portugal quer Espanha não conseguiam
proporcionar-lhes. Confraternizariam pelo caminho durante toda a viagem,
bebendo e comendo solidariamente até chegarem à fronteira com a França.
Chegados à fronteira com a França pararam, recebendo ordens
do condutor para ninguém sair dos seus lugares pois ele ia tratar dos papéis
com os franceses. Armando e Faustino desconheciam completamente de que papéis
se tratavam, pois não lhes tinha sido pedido nenhuma documentação que aliás não
tinham, exceptuando o Bilhete de Identidade, mas aguardaram serenamente. Pouco
depois o condutor lá voltaria novamente dizendo que tudo estava ordem e que iam
seguir viagem. E assim aconteceu. Por terras de França lá iam palmilhando pela
calada da noite quilómetros e mais quilómetros direitos a Paris.
Paris |
Despediram-se calorosamente dos companheiros de viagem que
com as trouxas às costas e as malas de cartão cheias de esperança para ali se
deslocavam em busca de uma vida com dignidade. Estava-lhes destinado para a
maior parte deles certamente, mendigar trabalho de obra em obra e habitar um
qualquer bairro de lata superlotado dos arredores de Paris. Armando e Faustino
sentiam uma profunda frustração e revolta ao mesmo tempo, por ver aqueles que
tudo produzem, sujeitos a tanta humilhação de tarecos às costas e entregues a
todos os despotismos a que os mais fracos ficam sempre sujeitos.
Mas a vida tinha que continuar e lá foram calcorreando de
rua em rua às apalpadelas à procura de uma pensão rasca, pois os tostões na
algibeira eram escassos. De pensão em pensão lá foram andando até encontrarem
uma, cujo preço lhes pareceu ajustado aos tostões que tinham no bolso e que
tinham que fazer esticar. A primeira coisa que fizeram foi tomar banho e até se
sentiam uns Senhores depois do dito. Há muito que não se sentiam tão
confortados, tão descontraídos na vida e de bem com a sua consciência.
Com quase nada na algibeira e outro tanto na carteira, nem
ninguém de quem se socorrer para fazer frente à vida no dia seguinte, Armando
sentia em vez de uma natural insegurança, uma estranha sensação de liberdade
como nunca tinha sentido até então. Sentia-se como uma andorinha à solta sem
amarras de qualquer espécie e até lhe parecia que o mundo era todo seu.
Já na cama da pensão e na verdura dos seus vinte e poucos
anos Armando perguntava para os seus botões: “será afinal por causa das
‘coisas’ e do poder que elas dão que os homens não se entendem, acabando alguns
por ser escravos das próprias ‘coisas’ e até de si próprios e outros obrigados
a emigrar, apenas para ganhar o pão nosso de cada dia? E se as ‘coisas’fossem
de todos e não fossem de ninguém ao mesmo tempo, como é que seria”? No meio
destas dúvidas e perguntas e exausto depois de três dias intensos, caiu que nem
uma pedra numa cama que lhe parecia francamente de Rei, dormindo que nem um
Anjo o seu merecido sono dos justos!
(CONTINUA)