segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Caminhos e estradas são suprema aspiração da gente de Vaqueiros

(PUBLICADO NO JORNAL DO ALGARVE DE 10 DE FEVEREIRO DE 1973)








Escreve


Luís Cunha





[Vista parcial da aldeia de Vaqueiros. Foto JV, Maio de 2010]

Indiferente aspo politiquices dos homens e muito antes de dividir Portugal e Espanha, o Guadiana Cavava profundamente o seu leito em terrenos de xisto. A aridez desértica que esta rocha imprime ao ambiente é a mesma nas duas margens; ar extremamente seco, puro e saudável: verificando-se chuvas escassas e irregulares durante um curto período de três meses, ausência total de nascidios ou fontes superficiais, por falta de infiltrações e vegetação arbustiva de xerófilas desérticas.

Escaldada por um largo e ardente Verão de nove meses, eis uma região pavorosamente bela.

Nos pequeníssimos cercados (instituição que, como as hortas, parece de origem mourisca) à volta dos povoados, os homens plantam árvores: amendoeiras, oliveiras, alfarrobeiras e outras necessitando de pouca água. Fora disso, tudo são escampados, muito embora, espaçados, aparecem como testemunhos de florestação espontânea a azinheira e sobreiro.

Num Dário das Sessões da Câmara de Alcoutim da década de 30 ou 40 do século passado, vimos que eram postas em praça as rendas dos montados para pascigo de porcos. A essa praça concorriam gentes de Loulé, Tavira e Mértola, e daí o concluirmos que a região fora outrora densamente povoada dessa espécie. Corroborava esta crença a narrativa que um velho amigo à muito nos fizera, de como alguns indivíduos haviam granjeado fortuna nos primeiros anos deste século, fornecendo lenha e carvão para o comboio, acabado de chegar a Vila Real de Santo António e de como assim se havia despovoado a serra.

Em recente visita à freguesia de Vaqueiros, de ponto em que se divisa enormíssima extensão de 15 a 20 quilómetros, Espanha a dentro, verificámos, no lado espanhol, a mesma total ausência de arborização, com o que essa crença se nos desvaneceu. As azinheiras que se vêem dispersas podem ser testemunha de muitas outras mais, mas nanja da florestação densa que imagináramos.

A existência de animais bravios de grande porte: javalis, veados e possivelmente zebras e lobos, essa é que os diários das sessões camarárias confirmam pelas muitas batidas ali determinadas e ainda por se não poder pensar que o príncipe D. Carlos fosse a Alcoutim caçar perdizes ou lebres, como em Aveiro, na década de 30, nos testemunhou um senhor idoso, fidalgo de origem, que fora amigo do príncipe e à vila algarvia o acompanhara em digressão venatória.


Mas, o que agora pretendíamos era falar da freguesia de Vaqueiros, a bela serrana daquele concelho.

Com a curiosidade espicaçada por sugestiva e interessante narrativa de um amigo, e no intuito de conhecer de perto as condições que nos descrevia, fomos de abalada até lá.

A estrada que deverá um dia (?) atravessar a ribeira atravessar a ribeira de Odeleite e, prolongando-se, ir entroncar em outra do concelho de Tavira, vai já alguns quilómetros além da aldeia, mas ficou-se, há uns oito ou dez anos, nos primeiros acidentes dos contrafortes onde começam as enrugadíssimas vertentes da ribeira. Daí se avista, em horizonte, extraordinariamente lato, a maioria dos povoados da freguesia, as serranias que do planalto levam ao Guadiana e algumas dezenas de quilómetros de terra espanhola.

A visita fez-se no Verão em período de completo repouso estacional. Agrestes e completamente escalvados, os enormes serros em que o xisto aflora por toda a parte, não mostram uma só árvore, uma só folha verde, o que confere pavorosa desolação à majestade da paisagem.

[Magnífica vista das serranias de Vaqueiros. Foto JV, 2009]

Alcandorados nas dobras da serrania, os pequeninos agregados de 8 a 10 famílias, isolados uns dos outros por enormes distâncias e de todo o mundo pelo esquecimento, vegetam em apavorante estagnação, sem comércio nem meios de comunicação. Sem preocupação com as comodidades de acesso, ou talvez melhor, em conformidade com os transportes da época – a pé ou a cavalo – a sua implantação nessas tremendas pregas da serra obedeceu a considerações de natureza agrícola, com uma organização social e económica de agricultura familiar fechada, sendo notória a debilidade de recursos, a monocultura do trigo com fins exclusivos de sustentação e o aparecimento, aqui e além, de indícios de que por meio de poços se poderia conseguir água para consumo alimentar.

À volta dos poços se instalaram as gentes e tudo assim resta hoje adormecido, como que inacessível ao progresso, justificando as lamentações daquele nosso amigo: Nada tem de novo esta situação de miséria de que só agora se toma consciência desde que a emigração em procura de trabalho fornece ao homem novo padrão para aferi-la.

A deserção da população válida, acarreta a necessidade de renovação de que os velhos são incapazes pelo que a perpetuidade de tão exíguos agrupamentos se acha perigosamente ameaçada. É uma situação gritantemente dramática; - “os vivos – diz o nosso amigo – queixam-se que os mortos os matam no caminho para o cemitério da aldeia” porque as veredas vicinais, estreitas e desniveladas, não comportam a passagem de dois homens a par.

[O monte do Pomar encravado na serra. Foto JV, 2009]

Até há bem pouco tempo, e possivelmente ainda hoje, de um ou outro monte – o que o nosso amigo teria calado supondo tremenda injúria – os mortos eram conduzidos a dorso de burro, amarrados entre dois molhos de palha.

Várias designações locais – Horta dos Guerrilhas, Cemitério dos Guerrilhas – testemunham a assiduidade do celebrado Remechido por terras de Vaqueiros, sabendo-se ter incendiado duas vezes as repartições de Alcoutim onde não encontrou dinheiro.

A gente de Vaqueiros é a melhor que conhecemos e bem pouco pedem, os pobres, para o muito de que precisam e merecem: reclamam caminhos e estradas, mas entendemos que algo mais seria justo dar-lhes.