terça-feira, 14 de setembro de 2010

A Guerra Civil espanhola no meu imaginário de criança!






Escreve


Amílcar Felício


Nasci sete anos depois do fim da guerra civil de 1936-1939 (*), mas os reflexos daquela guerra fratricida nas conversas no seio das famílias alcoutenejas, deveriam ter perdurado com tal veemência, que mais de 10 anos depois do fim da guerra eu ainda vivia atormentado. O que seria natural, pois Alcoutim tinha assistido a uma guerra civil ali mesmo “ao pé da porta” e tinha espreitado pelo “buraco da fechadura” o terror dos fuzilamentos franquistas no cemitério de Sanlúcar, sentindo aquelas mortes como suas, dado o relacionamento quase familiar naqueles tempos entre as duas povoações ribeirinhas.

Pelo contrário, publicamente quase toda a gente era muito reservada, possivelmente por vivermos num regime que sob a capa neutral da “não-intervenção”, todos sabiam que tinha apoiado aquela chacina quer logisticamente, quer enviando à socapa mais de 20.000 homens armados: a famigerada Legião Viriato. Mas se exceptuarmos o “Sargento” Diogo que assumia a sua participação ao lado da República quando já tinha o seu copito, não me recordo de grandes conversas sobre a guerra civil. Salazar sabia que a sua sobrevivência dependia da vitória de Franco e que a sua derrota constituiria com toda a probabilidade, uma mudança na geografia política da Península Ibérica. Por isso deu-lhe camufladamente todo o apoio. Política que haveria de prosseguir mais tarde durante a 2a. Guerra Mundial: ajudar o Diabo fingindo de que estava de bem com Deus!

[Sanlúcar do Guadiana. Foto JV, 2010]

Possivelmente beneficiando desta clima de reserva ou mesmo receio, acoitou-se em Alcoutim aonde viveu sob o disfarce de “tocador de concertina” que fazia a alegria da pequenada, uma figura sinistra – o Bernardino – que apareceu assassinado nos anos cinquenta, numa valeta de estrada no baixo Algarve aonde se deslocara. Lembro-me dele e da notícia do assassinato, mas não me recordo ou passava-me despercebido qualquer tipo de animosidade contra ele, por parte da população. Também não tenho qualquer ideia da sua chegada a Alcoutim. Este facínora, segundo rezavam as crónicas, matava por uma peseta a mando dos franquistas, qualquer suspeito de simpatizante da República. Terá sido por receio que as nossas gentes suportaram no seu seio a presença deste “matador profissional”, ou será que só depois do assassinato é que se soube das razões do mesmo? Fica a pergunta.

Mas se as manifestações públicas sobre a guerra civil não eram perceptíveis, tudo leva a crer que em família a conversa já deveria ter sido muito diferente, como referi anteriormente. Contava-me a minha mãe de que apenas com 2 ou 3 anos de idade e fazendo o meu papel de “homenzinho”, portanto nove ou dez anos depois do fim da guerra civil, eu ainda a aconselhava “a tratar bem os homens da guerra se eles viessem a nossa casa, para que eles não nos fizessem mal!”



Para fazermos uma ideia da brutalidade daqueles anos tenebrosos e da ligeireza com que se fuzilavam homens, o marido de uma tia minha chamada Felismina, o meu tio Acácio se o nome não me falha, homem de trabalho que ia fazendo pela vidinha em Ayamonte, já estava em fila no cemitério em frente do pelotão de fuzilamento, todo borrado naturalmente como ele próprio confessava sem vergonha, quando surge alguém ao longe a gritar: “no tireeeen, no tireeeen!” o que fez com que o pelotão de fuzilamento parasse o seu “sujo trabalho”. “Hay un engaño jefe, ese ahí no és” dizia esse alguém quando chegou. Tratava-se do meu tio que tinha sido denunciado por engano. Escusado será dizer que se raspou para Portugal na primeira oportunidade e que se acolheu às Hortas de Vila Real de Santo António de aonde nunca mais saiu. O susto foi tão grande que nem queria olhar para Espanha!

Aonde os franquistas chegavam começava “a caça aos rojos”, levando os homens para o cemitério para serem fuzilados e as mulheres a quem rapavam a cabeça e purgavam muitas vezes, deixavam-lhes uma madeixa de cabelos aonde atavam uma fita vermelha. Exibiam-nas depois pelas ruas, numa atitude pública do mais vil vexame. Os sinos das igrejas serviam muitas vezes para sinalizar a aproximação das hordas falangistas, escondendo-se aterrorizados cada um aonde podia ou fugindo para Portugal se fosse fronteira.

Estes factos dão uma ideia da barbárie que se abateu sobre Espanha em pleno século XX e da ligeireza com que se matavam inocentes e “culpados”, culpados de não quererem viver na miséria. Mas proporcionaria também um dos mais belos quadros de solidariedade entre os homens e mulheres do século XX, com a participação de mais de 40.000 voluntários de todos os continentes e nacionalidades ao lado da República: as Heróicas Brigadas Internacionais. Intelectuais como André Malraux, Hemingway, George Orwell ou Simone Weil entre tantos outros, ali deixaram o seu nome gravado na mesma trincheira de Federico García Lorca.

Uma palavra de apreço aos barranquenhos que salvaram milhares de vidas – contra as directivas salazaristas – assim como ao nosso povo de uma maneira geral, particularmente no norte do país que escondeu muitos fugitivos da sanha das hordas falangistas, o que terá facilitado a resistência da guerrilha galega que sobreviveu com alguma expressão até aos anos cinquenta.



Na realidade, penso que a Europa nunca deu o devido valor ao sacrifício do povo espanhol na sua luta pela liberdade e pela democracia que temos hoje, assim como pelo alerta contra a natureza da besta nazi, que o massacre de Guernica já evidenciava. De facto na sua luta quase solitária quer em Espanha – com a neutralidade criminosa das democracias ocidentais e a ajuda timorata e calculista russa – quer por essa Europa fora de um modo geral, aonde acima de meio milhão de espanhóis fugidos ao franquismo – uma das maiores diásporas do século XX – constituiriam muitas vezes os grandes impulsionadores da resistência popular ao nazismo, nomeadamente em França. Avalia-se em mais de 400.000 os mortos durante a guerra civil.

Mal sabia eu que quase três décadas depois do fim da guerra civil pelas fábricas de Bruxelas, ainda iria ajudar a enxugar as lágrimas de revolta de antigos combatentes e perseguidos do franquismo, sentir as dores e o ódio dos filhos dos fuzilados e partilhar com eles os sonhos de um mundo novo com que muitos ainda sonhavam. Retalhos vivos trinta anos depois, dos heróis que fizeram parte do meu imaginário de juventude. Mas também tive que conviver com alguns franquistas empedernidos que não se tinham arrependido, mas que mantínhamos com desprezo marginalizados e em sentido.

Mas deixemos Bruxelas e viajemos até Alcoutim dos anos de 1950 ou 1951 já não me lembro ao certo e de aonde às vezes ainda me parece de que nunca de lá saí, tantas as vezes que ali me “refugio” mesmo sem lá estar. Teria portanto os meus 4 ou 5 anos de idade, isto é, onze ou doze anos depois do fim da guerra civil, quando se deu um acontecimento importante em Alcoutim: a visita do Bispo do Algarve.



Mas o fantasma da guerra ainda me perseguia com todas aquelas estórias de que eu tinha conhecimento. A recepção ao Bispo era na Igreja da Conceição, aonde Alcoutim em peso esperava por tão ilustre visitante. Eu, a minha irmã e o meu primo Zé Manel também lá estávamos presumo que sem sabermos bem porquê, pois vínhamos de uma família pouco praticante. Eis que surge o carro do Bispo na velha curva do Poço das Figueiras, o que marcaria certamente o início das cerimónias e do estoirar de foguetes e mais foguetes de Boas Vindas. Espavoridos, corremos aterrorizados para casa e só conseguíamos dizer a custo: Começou a guerra! Começou a guerra! Começou a guerra!

Nota: (*) Cerca de trinta e cinco anos depois, acabaríamos por cometer basicamente os mesmos erros que “nuestros hermanos”, realizando praticamente a mesma política de alianças sob uma orientação política central muito semelhante. Só não tiveram as mesmas consequências tenebrosas com o 25 de Novembro por mero acaso, mas andou lá perto... No lado de lá queriam “ganhar primeiro a guerra e depois a revolução”, do lado de cá “consolidar a democracia e depois a revolução”, como se houvesse outra maneira de aprender a nadar que não fosse nadando. Não conheço ninguém em Alcoutim que tivesse aprendido a nadar em seco... Tiveram todos que ir para a Ribeira ou para o Guadiana! Desculpem-me lá este desabafo, mas estamos no Alcoutim Livre!

Pequena nota
O silêncio referido por Amílcar Felício ainda o senti nitidamente em finais da década de sessenta, era assunto que as pessoas, de uma maneira geral não gostavam de referir ou comentar. Sentia-se o poder salazarista sempre “bem representado” pelas figuras importantes que constituíam a chamada União Nacional e o medo dos bufos que proliferavam por toda a parte.
José Temudo lembra-se muito bem de uma pessoa sinistra que denunciava qualquer foragido que encontrasse e como o povo alcoutenejo o esqueceu, não era ele que o iria revelar, segundo me afirmou.
Por indicação que obtive recentemente é natural que um alcoutenejo, de que até possuo fotografia, se teria batido ao lado dos republicanos onde é provável ter perdido a vida em combate ou fuzilado.
Uma familiar, residente no estrangeiro, está tentando obter documentação e informações que a levem a essa conclusão.
O 25 de Abril em Alcoutim foi recebido com frieza, excepto pelos jovens e meia dúzia de pessoas. Os restantes foram mudando com o rodar do tempo e alguns dos quais se tornaram depois muito activos vindo mesmo a ocupar lugares políticos.
Isto não se passou só em Alcoutim, passou-se por esse país fora.


JV