quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações - XVII

Pequena nota
Daniel Teixeira tem-nos presenteado com um conjunto de crónicas interessantíssimas que nos retratam a vida dos “montes” do concelho de Alcoutim na segunda metade do século passado. É o único que o faz em relação a esta área geográfica, já que os outros colaboradores que recorrem à memória o fazem com base na vila onde nasceram e tiveram as suas vivências.
É por estas e outras que o ALCOUTIM LIVRE se torna tão abrangente e é cada vez mais procurado por quem gosta de saber a verdade sobre Alcoutim e o seu concelho.
Obrigado Daniel Teixeira por este valioso contributo.


JV





Escreve


Daniel Teixeira




MEMÓRIAS DE BURROS E NÃO SÓ

Uma parte da minha vida foi passada com burros, com esses nem sempre simpáticos animais mas para os quais se guarda sempre um cantinho privilegiado nas nossas memórias. Dormia muitas vezes com o meu avô na arramada, na parte do palheiro próximo e salvo erro em dezenas de noites que lá passei em todos os anos só uma vez vi um burro «deitado» de joelhos porque sempre que acordava durante a noite os via de pé, sempre remoendo a palha na manjedoura, o que me levava a acreditar que os burros não dormiam.

O Jerico, esse meu paciente amigo suportava todas as minhas traquinices cavaleirescas com aquela paciência que só os burros têm. Queria eu à força que ele atingisse o galope e a velocidade de um cavalo no curto trajecto que nos levava da porta da casa da minha avó até a arramada. Sempre se recusou a fazer isso e ainda bem.

Quando montei uma égua pela primeira vez compreendi como era difícil ter mão nesses nervosos animais logo á primeira: em dias de trabalho usava-se até mesmo para os cavalos uma coisa que agora considero repreensível que eram as serrilhas nos cabrestos para funcionar como desmotivador do desabrochar nervoso do animal.

Umas vezes dava largas à arreata (rédeas era só terminologia para domingos e feriados) e ela entrava em trote; em resposta acabava por apertar demais e ela empinava. Mas nunca caí de cima de um animal o que por aqueles lados, com o pedregoso e o inclinado dos terrenos poderia ter sérias consequências.

O meu tio Afonso, já aqui referido numa crónica, GNR de cavalo, percorrendo montes e vales até à reforma, deu um tombo de uma mula espantada e ficou mesmo mal apesar de o terreno onde caiu ser um terreno de passagem constante e relativamente nivelado.

Contava-se por lá também, curiosamente nas proximidades do mesmo sitio em que o meu tio Afonso foi deitado abaixo pela mula, que o senhor Antonico, irmão da senhora Antonica, esposa do senhor V., tinha deixado cair dos seus braços e de cima do cavalo uma criança de colo que logo ali tinha ficado. Insistira com a mãe do bebé que queria pegar-lhe ao colo... Não se falaria nisso se não houvesse na história uma ponta de verdade embora o assunto não fosse muito falado: a capacidade daquela pobre gente em esquecer as coisas era de facto enorme.

[Cada vez se vê menos esta tarefa - ir pôr o burro a pastar. Foto JV. 2003]

Nunca me foi referido, por exemplo, por ninguém no monte, inclusivamente pelos familiares, a existência de um outro filho ou irmão naquela família que eu conhecia relativamente bem e com a qual me relacionava com relativa frequência. Só soube a história anos depois quando começámos a receber em Faro a visita de um simpático senhor que era de Alcaria Alta acompanhado da sua esposa. Trabalhava numa companhia aérea e tinha avião grátis pelo que desde a abertura do aeroporto e desde a sua reforma visitar-nos era um dos seus passatempos.

Tantos anos depois, e eu já com alguma capacidade de discernimento, fui somando, depois que me foi contada pela minha mãe a história, a ideia de que ele insistia daquela forma em mostrar que estava bem e que tudo estava ou deveria estar esquecido sem o referir embora não demonstrasse qualquer vontade de regressar à sua terra de origem nem em visita. Considerara -se morto para o Monte e o Monte morrera para ele.

Contada que me foi a história pela minha mãe, e tendo em conta que as minhas memórias têm um fio de curso que francamente desconheço acho que foi a parte do cavalo que referirei á frente que me fez relacionar este evento com o que foi dito atrás.

[Último burro de Afonso Vicente. Só pasta. Foto JV, 2005]

Aquele senhor simpático, uma jóia de pessoa, como se costuma dizer, com uma esposa igualmente humilde no trato e simpática, tinha, muitos, muitos anos antes, sido um género de terror do Monte. Aqui é preciso colocar as coisas em perspectiva: ele era miúdo, tinha alguma tendência para roubar e certamente que as coisas foram tratadas e vistas da forma a que estamos habituados também nos nossos tempos. Muita coisa lhe terá sido atribuída que ele não terá feito, certamente, e os empolamentos são sempre feitos pelo diz que disse.

Por aquilo que minha mãe contou ele foi «preso» no Monte porque foi apanhado a roubar um maço de tabaco, isto é claro depois de outras façanhas da mesma índole ou valor aproximado lhe terem sido atribuídas como será lógico. Aqui a importância do detalhe fez-me ficar a saber uma coisa que nem calculava sobre a polícia dos Montes: quem detinha a autoridade para a detenção era o habitante do Monte presente que mais recentemente tivesse acabado a tropa.

Era aquilo a que hoje se chama de detenção civil devidamente hierarquizada. Não sei até que ponto essa pessoa era responsável pela segurança do detido até chegada da GNR mas é de supor ter havido alguma violência e humilhação porque me lembro que a minha mãe referia com algum ênfase: «que ele, quando o montaram algemado na garupa do cavalo do GNR tinha levantado os dois braços no ar e tinha gritado que se viria vingar um dia e que os seus olhos tinham ficado raiados de sangue com uma vermelhidão luminosa.»

[Monte da Preguiça onde um "velho" agricultor não dispensa o precioso auxílio do burro. Foto JV, 2011]

Passada a parte com seguramente farta imaginação e bastante atavismo próprio da altura (talvez primeira metade do século XX) vim a saber também que ele utilizava uma cana com uma agulha de coser na ponta para picar e puxar os maços de tabaco pelo postigo do barbeiro, que vendia também tabaco, o que não deixa de ser imaginativo passe o humor perante circunstâncias que diabolizaram o então miúdo e o levaram a uma instituição em Lisboa que acabou por fazer dele um homem com mais recursos académicos e profissionais do que todos aqueles que o desprezaram um dia.

O facto de ele nos visitar deve ter começado por ser para ele uma acção custosa da primeira vez mas o grau de compreensão da minha mãe era suficientemente largo, embora eu notasse sempre que havia implícita nas conversas dele como que um pedido de desculpas pelo seu passado, quando na minha opinião quem lhe devia fortes desculpas era o próprio Monte, e que isso era coisa que parecia roer-lhe ainda a memória e que não conseguia esquecer. Havia ainda nele um desejo escondido e pouco manifesto de saber coisas do Monte e eu via-lhe o brilho nos olhos quando por aí se passava nas conversas.

Este, ao contrário do pessoal do Monte, que mais facilmente esquecia as coisas, as arquivava mesmo, não conseguia talvez 50/60 anos depois libertar-se dessa memória.