quinta-feira, 10 de novembro de 2011

"Pecados" de antigamente...





Escreve

Amílcar Felício




[Rua Portas de Mértola. Foto JV]

Ia com ela ao poejo umas vezes ao Barranco da Amarela outras, ao Barranco do Poço das Figueiras. Às vezes até nos aventuravamos pela ribeira acima até quase ao Pego da Arvela, junto às velhas passadeiras das Cortes Pereiras.
Perguntava-me sempre antecipada e delicadamente, “então e quando é que queres ir com a vizinha ao poejo”? “Quando a vizinha Francelina quiser”, respondia-lhe eu quase sempre... E lá íamos nós de tempos a tempos apanhar aquela planta silvestre, tão apreciada pelo paladar alcoutenejo.

Esta prática de utilização de plantas silvestres na gastronomia alentejana e certamente por “contágio” na serra algarvia, remonta aos séculos XV e XVI aos tempos das grandes navegações, cujo principal produto de comercialização eram as especiarias. Claro que a imaginação popular como sempre, sem grandes posses para adquirir tais luxos só acessíveis às classes mais abastadas na altura, rapidamente se desenrascou inventando alternativas com a prata da casa que não lhe ficariam nada atrás, diga-se de passagem.

Esses condimentos populares inventados em tão boa hora, fazem nos nossos dias as delícias dos gostosos sabores da tradicional cozinha alentejana e da serra algarvia, à base das mais variadas plantas aromáticas tão abundantes no Alentejo.

Já agora por falar de imaginação, repare-se na quantidade de pratos tão diversificados que os alentejanos confeccionam só com o pão! São as migas, a açorda, o gaspacho, as sopas de tomate etc., é um nunca mais acabar de saborosos pratos tão diferenciados mas embrulhados com o mesmo produto. Lá diz o povo com razão que “a necessidade aguça o engenho” e que engenheiros que estes alentejanos me saíram!

[Rua da Misericórdia e o "monstro". Foto JV]
Ou então por curiosidade mencionemos a origem do prato típico alentejano -- a célebre “sopa de cação” -- numa zona de sequeiro já repararam? Tratava-se de facto nem mais nem menos de peixe sem valor comercial, que os pescadores no Algarve davam nos meados do séc. XX a quem ia vender peixe ao Alentejo e que estes distribuíam ou vendiam depois a baixo preço às famílias mais pobres. Assim nasceu mais um prato típico alentejano que ainda hoje constitui um cartão de visita!

A minha vizinha Francelina passava o dia em casa à janela a ver quem passava, pois não tinha amigas e era considerada uma “pecadora” inveterada vítima de censura popular implacável, apenas porque gostava de beber o seu copinho de vinho. E não se pense que exagerava por aí além, pois a garrafinha que usava para se abastecer teria os seus 250 ml quanto muito. O único passeio de que desfrutava era comigo, ou ao Barranco da Amarela ou ao Barranco do Poço das Figueiras, para apanharmos poejos.

Mas uma mulher gostar de vinho naqueles tempos era obra do Diabo, um pecado mortal que marginalizava automaticamente quem praticasse tal sacrilégio. Fazia-me confusão tanta má língua das pessoas, certamente uma falsa maneira de fazerem sobressair as suas virtudes... O ostracismo a que era votada levava-me naturalmente a acarinha-la e a estender-lhe a mão e era comigo que ela vinha ter quando as coisas se complicavam mais.

Os tostões lá em casa dizia-se, tinham todos o destino contado para não alimentar “vícios”. Assim e nas alturas de crise à socapa lá lhe enchia a garrafinha na taberna do meu avô, dando-lhe o simples prazer de beber um copo. E como ela ficava feliz com tão pouco! Foi um segredo que ficaria guardado entre nós para a vida, até hoje claro. Mas se ela ainda por cá andasse, perdoava-me com certeza esta escorregadela. Como a vida era difícil...

Contudo, certo dia a vigilância apertou de tal maneira que nem eu tinha qualquer possibilidade de fazer o que quer que fosse. Até que ela se lembrou: “olha lá Amílcar, arranjei cinco tostões e vais à Venda do Sr. Simões comprar cinco tostões de vinho para a vizinha, mas não digas para quem é”! E lá fui eu sorrateiro à Venda do Sr. Simões fazer o recado.

Claro que os “habitues” acharam aquilo estranho “em casa de ferreiro espeto de pau” e ver-me ir comprar vinho a outra Venda levava água no bico e claro toca de apertar comigo, tens que dizer para quem é o vinho etc. e tal se não o Sr. Simões não te avia. E o Sr. Simões que era danado para a brincadeira (andou anos e anos a tentar convencer-me de que tinha uma árvore que dava rebuçados!) depressa anuiu ao desafio e tanto apertaram comigo que na minha ingenuidade dos 4 ou 5 anos lhes respondi: “a minha vizinha Francelina não quer que eu diga...” Acho que foi a única vez que me descaí...

A Tia Albertina também era considerada uma “proscrita” porque gostava de fumar a sua cachimbada às escondidas claro, por causa das más línguas...
Se nos perguntarmos hoje quem é que ainda não viu uma menina ou uma senhora, beber um copo ou fumar uma cigarrada num café ou numa explanada, com certeza que não há ninguém que não tivesse assistido a uma banalidade destas! Mas quantas meninas ou senhoras saberão dar o valor a este simples gesto de liberdade individual, sem o peso da censura popular terrível que existia naqueles tempos?
A volta que isto levou culturalmente no curto espaço de uma só vida...