quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A matação do porco

Pequena nota
No nosso trabalho publicado há 26 anos sobre Alcoutim e o seu concelho incluímos na 3ª Parte – Notas Etnográficas e Folclóricas o tema “A “matação” do Porco que desenvolvemos nas páginas 307 a 309.

Em 1990 tínhamos preparada uma segunda edição e esse tema, naturalmente sofreu alguns ajustamentos. Ao ser lido agora para publicarmos no ALCOUTIM LIVRE verificámos que era necessário um novo ajustamento procurando manter o fundamental daquilo que então escrevemos. Estas coisas são mesmo assim, conforme o tempo vai passando vamos aclarando muitas situações e encontrando mais explicações para determinados procedimentos e adquirindo novos conhecimentos através de pesquisas e leituras adequadas ou novas ou que desconhecíamos.

JV



Trigo no celeiro, um palmo de hortejo e um porco na salgadeira, dizia-se que era condição suficiente para que um alcoutenejo se encontrasse “feliz” sem preocupações de maior.

Hoje a situação é naturalmente muito diferente - houve grandes modificações na vida. Como todos, este dito popular tem um sentido verdadeiro e está condicionado à vida exclusivamente agro-pastoril, que então pautava no concelho de Alcoutim.

O porco é um animal precioso, todas as partes do seu corpo, mesmo as entranhas, são comestíveis. Por outro lado, em salmoira, pelo fumo e com o auxílio da própria banha, conserva-se bem. Hoje, Alcoutim tem energia eléctrica em todo o concelho e nas últimas “matações” alguns destes processos foram substituídos. Deixaram de salgar para meter nas arcas congeladoras.

Criação fácil e rápida, com aproveitamento de resíduos de toda a espécie. Outrora, consumiam os excedentes agrícolas e o período especial de engorda era feito também com produtos criados pelo agricultor. Hoje, como se sabe, imperam as farinhas apropriadas. No campo, já pouco ou nada se colhe.

A carne de porco constituía uma pedra importante na alimentação do alcoutenense. Era assim que todos os que tinham uma vida virada para o campo, e não só estes, engordavam o seu porquito para matar.

No mês de Dezembro ou de Janeiro, por serem os mais frios do ano e isso evitar que as carnes se estragassem, depois de cevados, é a altura própria para o abate, a que o alcoutenejo chamava “MATAÇÃO” e não matança e que constituía um dia de festa.

Para o efeito, faziam-se adequados convites que englobavam familiares, compadres, vizinhos e pessoas a quem se deviam favores ou se pretendia demonstrar amizade.

Enquanto uns só lá iam para comer, outros eram “requisitados” fundamentalmente para prestarem a ajuda indispensável, vindo a pagar do mesmo modo.

No dia aprazado, logo pela manhã, os homens experientes iam buscar o suíno que agarravam e deitavam sobre uma banca ou um caixote bem seguro. Atadas as mandíbulas com uma corda, para o animal não morder, vinha o “matador” (1) que espetava a faca bem afiada com um golpe ágil e certeiro que atingia o coração. Da vítima jorrava o sangue apanhado num alguidar, tacho ou qualquer outra vasilha onde se tinha colocado sal e vinagre e que se ia mexendo para não coalhar. É tarefa destinada às mulheres.

Por perto havia uma pequena mesa onde estavam copos e uma garrafa de aguardente para os homens se servirem como “mata-bicho”.



Musgá-lo era a tarefa seguinte, isto é, queimá-lo com tojos apanhados nas redondezas e a que se lança com facilidade o fogo. Nos últimos tempos esta operação era feita com um maçarico.

Seguia-se o raspar do couro, trabalhosa operação feita com uma lata ou pedra, auxiliada por água bem quente oriunda das panelas, muitas vezes de zinco, que estavam ao “fogo”.

Procedia-se à extracção das unhas.

Em tempos antigos, o rabo era entregue aos moços que o comiam assado.

Tarefa para homem “especializado” era a abertura e desmancha do animal.



As tripas seguiam para o barranco mais próximo, que em tempo idos corriam bem, onde eram lavadas pelas mulheres. Viravam-nas com o auxílio de uma cana. Temperadas com rodelas de laranja para que tivessem melhor cheiro e paladar, iam servir para os enchidos.



Extraíam todas as vísceras a que se dava o destino adequado.

Uma balança de vara, tipo romano, era utilizada para determinar as arrobas e a que normalmente se seguiam alguns comentários relacionados com o peso.

Procedia-se à desmancha, carne magra para um lado, mantas de toucinho para o outro.

Os presuntos iam para a salgadeira, bem enterrados em sal grosso e sobre os quais se colocavam pedras suficientemente pesadas a fim de evitar que se estragassem. Meses depois, com a cura já feita, eram barrados com pimentão e pendurados.

Pelas duas ou três da tarde, chegava a hora da “fritada” ansiosamente esperada.

Nela entrava todo o tipo de carne, gorda ou magra, não esquecendo a cachola.

Temperava-se com alho pouco antes de estar concluída.



Depois deitava-se o sangue a que se tinha juntado vinagre e que se temperava agora é temperado com cominhos, louro e pimenta. Ficava assim preparado um outro tipo de comida a que chamam “moleja” e que é muito apreciada.

Havia quem deitasse algumas batatas na “fritada”.

Com a carne picada, faziam-se chouriços de carne, de sangue e belos “palaios” (paios).



Não faltava a “amassadura” de saboroso pão e o vinho “caseiro” regava o repasto contrabalançando o efeito da gordura, as gargantas sequiosas e os estômagos “agoniados”.

A “matação” do porco foi algo que começou a desaparecer mesmo antes das restrições impostas por lei.

Já serão bem poucos os porcos mortos anualmente no concelho. Primeiro, porque a vida agrícola está praticamente desapareci, segundo pelos que restam no concelho serem idosos e já não poderem desempenhar tais tarefas e terceiro os poucos novos existentes vão ao talho, compram e metem na arca.

NOTAS
(1) - Havia homens “especialistas” nesta arte que eram requisitados para o efeito, optando-se, obviamente pelos mais próximos.
(*) A reportagem fotográfica é de L.M.