terça-feira, 4 de setembro de 2012

Lisboa - Paris por cinco contos de réis [7]


 
 
Escreve

Amílcar Felício
 

 
Apesar do serão até altas horas na noite anterior, dia da chegada a Bruxelas, Armando e Faustino levantaram-se cedo e às 8 da manhã já lá iam com o Mário a caminho da Universidade Livre de Bruxelas à procura de trabalho. A oferta de trabalhos ocasionais naquele tipo de Sociedades de Consumo já instaladas há muito – consequência do grande desenvolvimento económico capitalista no pós-guerra – era longa e pouco usual para os costumes portugueses de então.

De facto, desde babysitter a dogsitter (passear cães no bosque para os aliviar do stress da vivenda calculem) havia de tudo um pouco. Optaram por um trabalho de polidor de carros numa oficina, pois tinham curiosidade em conhecer a mentalidade belga. Saíram-se airosamente da tarefa e os carros ficavam como novos, graças naturalmente às máquinas de polimento que manuseavam com mestria.


 Ficaram de boca aberta com o salário do primeiro dia, pois o pilim depois de convertido mentalmente em escudos – Armando e Faustino tinham dificuldade em sair do escudo, até parecia que estavam a adivinhar o futuro (!) – era o equivalente a quase 6 ou 7 dias de trabalho em Portugal. Era uma diferença salarial abismal! Aguentaram- se por ali toda a semana.

Trabalho-casa, casa-trabalho, lá iam conhecendo naturalmente cada vez mais gente, mas por mais gente que conhecessem nunca “saíam” do mesmo sítio: Portugal era quase sempre o local e o tema exclusivo de conversa. Parecia que viviam num bocadinho de Portugal que se tinha separado daquele Jardim à Beira-Mar Plantado e que andava por esse mundo fora à deriva, como a Jangada do Saramago.

De facto começavam a alargar rapidamente o leque de conhecimentos e amizades. Passavam os tempos livres a conviver e em debates acalorados ora na casa de um, ora na casa de outro ou a encharcar-se de filmes na Cinemateca, com filmes do Eisenstein e de outros realizadores russos da altura ao preço da uva mijona. Às vezes chegavam a palmar duas e três sessões contínuas até os olhos lhes ficarem vermelhos, como na Trilogia do Górki.


Marx

Era um fartar vilanagem de liberdade que nunca lhes tinha passado pelo estreito! E era um deslumbramento ver toda aquela realidade mítica do princípio do século, com toda aquela massa trabalhadora a saltar dos livros para o ecrã e a querer tomar em mãos o seu próprio destino, dando razão ao Marx e ao Lenine!
Mas quando olhavam para trás para o seu Portugalito que não os largava, sentiam-no sempre a uma distância enorme e parecia-lhes de que estavam no fim do mundo. De facto percorrer 2000 quilómetros por terra, dá uma sensação de distância tremenda! À noite então, quando saiam do Cinema ou de casa de um amigo às 2 ou 3 horas da madrugada com as ruas despidas de gente e vestidas do branco da neve que não parava de cair naquele Inverno terrível, sentiam-se uns autênticos Cavaleiros das Trevas num outro planeta. Punham-se a imaginar a sensação de que não teriam então, se estivessem na Suécia a 4000 quilómetros de Portugal. Provavelmente sentir-se-iam no outro lado do mundo!


Lenine

O facto é que o “sonho sueco” começava a esboroar-se e a arrefecer naquele gelo e a noção de distância de Portugal a dobrar, até os afligia quando pensavam nisso. Até que se decidiram finalmente a ficar por ali. E lá se deslocaram uma certa manhã à Sede da ONU em Bruxelas para legalizar a situação, pois andavam completamente clandestinos sem passaporte sequer, correndo naturalmente o risco de serem expulsos. Apresentaram-se ao responsável da ONU e contaram-lhe as suas estórias. Foram ouvidos atentamente sem qualquer interrupção. O responsável guardaria os seus comentários e as suas dúvidas para o fim.
Tratava-se de um tecnocrata austríaco já maduro na casa dos 60 anos, cuja experiência de vida pelo discurso que apresentava, pouco teria ido além de longos anos de confronto com a secretária e o caruncho da madeira, mas que tinha umas angústias existenciais e uns vaipes filosóficos de vez em quando, possivelmente para quebrar a monotonia do dia-a-dia: “cada vez compreendo menos os homens... os de Leste querem vir para o Ocidente e os que cá estão não se sentem cá bem, vá-se lá perceber isto! Ninguém se sente feliz onde quer que esteja, não dá para entender! Mas o que é que os homens querem afinal, vocês sabem-me dizer?”

E no meio destas dúvidas e angústias existenciais do responsável da ONU, Armando e Faustino lá formalizaram o seu pedido de Refugiados, que seria aceite alguns dias depois. Estavam finalmente legalizados e podiam movimentar-se por toda a Europa sem barreiras nem fronteiras, excepto para Portugal naturalmente. Bruxelas seria agora o seu porto de abrigo e o seu poiso dali em diante.

As primeiras notícias começavam a chegar de Portugal. A deserção de Armando tinha caído como uma bomba em Alcoutim com muita incompreensão à mistura, o que era natural. Desde “traidor à Pátria” a “cobardola com medo da guerra”, sussurrava-se de tudo um pouco à boa maneira alcouteneja. Alguns até garantiam que ele tinha ido fazer a guerra para Argel que tinha acabado 10 anos antes, mas que pelos vistos em Alcoutim ainda continuava, pois tinha tido um grande eco para aquelas bandas não se sabe bem porquê.

Armando sabia compreender aquelas incompreensões passe a redundância e não lhe ficava a mais pequena mágoa pessoal contra aquela gente com quem tinha crescido, de quem gostava e por quem tinha um enorme afecto. Na realidade tinha plena consciência da força da ideologia conservadora dominante e do matraquear há quase 50 anos sempre na mesma tecla do “Deus, Pátria e Autoridade” e o tempo que estas coisas levam a mudar!

Por outro lado conhecia perfeitamente o habitual cochicho alcoutenejo próprio dos meios pequenos aonde não acontece quase nada e a que achava imensa graça. Costumava responder aos críticos que o acusavam de não conhecer aquela gente e de gostar de gente falsa: “se a gente também não faz um bocado de má língua e fofoca, o que é que andamos a fazer cá neste mundo?”

Ironia do destino, na realidade pouco mais do que o Padre da altura teria compreendido a sua atitude e ousado ir felicitar eufórico o pai de Armando, pela decisão que o filho tinha tomado. O Cabo da GNR foi psicologicamente abalado informa-lo de que tinha um mandato de captura para o filho: “nem sei como lhe hei-de dizer isto!” começou assim a conversa. “Não diga nada homem, que eu já sei tudo... respondeu-lhe o pai de Armando, aliviando o Senhor daquela situação desagradável.

Pelo contrário, as forças oposicionistas espalhariam rapidamente a notícia pelo Algarve e pelo Alentejo. O cargo de alguma importância local que o pai de Armando desempenhava na altura, serviria às mil maravilhas de caixa de ressonância dando uma força e uma visibilidade à notícia, que seria impossível de outra maneira – mais uma vez uma coisa má acabava por ter o seu lado bom - o que levaria uma brigada da pide a deslocar-se a Alcoutim para negociar com o pai de Armando o seu regresso, com a garantia de que nada lhe aconteceria, para colocar um ponto final naquela derrota pública local e certamente fazer posteriormente o contra-ataque ideológico em prol do regime. Naturalmente que o assunto morreria por ali, pois Armando só mais tarde viria a saber destas peripécias, quando foi visitado pela mãe um ano mais tarde.

Mesmo em Bruxelas teria oportunidade de confirmar aquele impacto regional da sua deserção, quando visitava certo dia a mãe de um amigo natural da Vidigueira e que nem conhecia Alcoutim. Quando Armando lhe perguntou como é que as coisas iam em Portugal a Senhora respondeu: “vão muito mal amigo, aquilo está tudo a desfazer-se, veja lá que até já o filho do Presidente de Alcoutim desertou!”. Armando riu-se e apresentou-se à Senhora como deve ser. Foi uma gargalhada geral!

Armando e Faustino depois de terem decidido fazer de Bruxelas o seu novo poiso, naturalmente saíram de casa dos amigos que os tinham acolhido e começavam a organizar as suas vidas, alugando a sua própria casa. Contudo ao fim de menos de 1 ano, separaram-se por divergências profundas de concepções do mundo e da vida. Tinham optado por diferentes modos de vida. Faustino começava a afastar-se daquela comunidade que o tinha acolhido e a deixar-se deslumbrar com a vida marginal de Bruxelas e de Amesterdão que o encantava e que visitava regularmente.

E assim por ali andaram, cada um por seu lado quase 5 anos que lhes pareceram uma eternidade, até que o 25 de Abril lhes abriu as portas do regresso. Armando saberia do acontecimento logo às 7 horas da manhã quando entrava para o trabalho, por intermédio de um operário espanhol amigo que tinha ouvido na rádio, notícias de movimentações militares em Portugal. Informou de imediato os colegas portugueses que ali trabalhavam, tendo decidido entre eles eleger um dos operários mais esclarecidos da fábrica, para consultar a comunidade e tirar a limpo o que se estava a passar.

 
As notícias que trazia a meio da manhã eram animadoras, falando de grande adesão popular ao Movimento Militar em todo o país. Portugal, os Capitães de Abril e o povo português mereciam nesse mesmo dia honras de primeira página, em todos os jornais franceses e belgas. Era um espectáculo ler aquilo! Desta vez parecia que não era “a morte que tinha saído à rua num dia assim” como cantava o Zeca Afonso na altura. Era a Grândola e o Povo que tinham tomado conta dela e ameaçavam tomar conta da própria vida.
 
A comunidade portuguesa viveria os acontecimentos com entusiasmo e como se neles estivesse a participar colada ao rádio e lendo jornais, embora com alguma desconfiança à mistura pois quando a esmola é grande... e com o receio natural de que se tratasse de uma operação de maquilhagem para continuar tudo na mesma, pois o homem que se dizia estar por detrás do movimento não lhes merecia grande credibilidade pelas suas conhecidas ideias neo-colonialistas.

Por isso nada de precipitações, era preciso seguir os sábios ensinamentos de S. Tomé, até mesmo aqueles que não fossem católicos! No entanto pelo sim pelo não, sentiam que era melhor começar a fazer as malas...

(CONTINUA)