Amílcar Felício
Apesar do serão até altas horas na noite anterior, dia da
chegada a Bruxelas, Armando e Faustino levantaram-se cedo e às 8 da manhã já lá
iam com o Mário a caminho da Universidade Livre de Bruxelas à procura de
trabalho. A oferta de trabalhos ocasionais naquele tipo de Sociedades de
Consumo já instaladas há muito – consequência do grande desenvolvimento
económico capitalista no pós-guerra – era longa e pouco usual para os costumes portugueses
de então.
De facto, desde babysitter
a dogsitter (passear cães no bosque
para os aliviar do stress da vivenda calculem) havia de tudo um pouco. Optaram
por um trabalho de polidor de carros numa oficina, pois tinham curiosidade em
conhecer a mentalidade belga. Saíram-se airosamente da tarefa e os carros
ficavam como novos, graças naturalmente às máquinas de polimento que manuseavam
com mestria.
Trabalho-casa, casa-trabalho, lá iam conhecendo naturalmente
cada vez mais gente, mas por mais gente que conhecessem nunca “saíam” do mesmo
sítio: Portugal era quase sempre o local e o tema exclusivo de conversa.
Parecia que viviam num bocadinho de Portugal que se tinha separado daquele
Jardim à Beira-Mar Plantado e que andava por esse mundo fora à deriva, como a
Jangada do Saramago.
De facto começavam a alargar rapidamente o leque de
conhecimentos e amizades. Passavam os tempos livres a conviver e em debates
acalorados ora na casa de um, ora na casa de outro ou a encharcar-se de filmes
na Cinemateca, com filmes do Eisenstein e de outros realizadores russos da
altura ao preço da uva mijona. Às vezes chegavam a palmar duas e três sessões contínuas
até os olhos lhes ficarem vermelhos, como na Trilogia do Górki.
Marx |
Era um fartar vilanagem de liberdade que nunca lhes tinha passado pelo estreito! E era um deslumbramento ver toda aquela realidade mítica do princípio do século, com toda aquela massa trabalhadora a saltar dos livros para o ecrã e a querer tomar em mãos o seu próprio destino, dando razão ao Marx e ao Lenine!
Mas quando olhavam para trás para o seu Portugalito que não
os largava, sentiam-no sempre a uma distância enorme e parecia-lhes de que estavam
no fim do mundo. De facto percorrer 2000 quilómetros
por terra, dá uma sensação de distância tremenda! À noite então, quando saiam
do Cinema ou de casa de um amigo às 2 ou 3 horas da madrugada com as ruas
despidas de gente e vestidas do branco da neve que não parava de cair naquele
Inverno terrível, sentiam-se uns autênticos Cavaleiros das Trevas num outro
planeta. Punham-se a imaginar a sensação de que não teriam então, se estivessem
na Suécia a 4000
quilómetros de Portugal. Provavelmente sentir-se-iam no
outro lado do mundo!
Lenine |
O facto é que o “sonho sueco” começava a esboroar-se e a arrefecer naquele gelo e a noção de distância de Portugal a dobrar, até os afligia quando pensavam nisso. Até que se decidiram finalmente a ficar por ali. E lá se deslocaram uma certa manhã à Sede da ONU em Bruxelas para legalizar a situação, pois andavam completamente clandestinos sem passaporte sequer, correndo naturalmente o risco de serem expulsos. Apresentaram-se ao responsável da ONU e contaram-lhe as suas estórias. Foram ouvidos atentamente sem qualquer interrupção. O responsável guardaria os seus comentários e as suas dúvidas para o fim.
Tratava-se de um tecnocrata austríaco já maduro na casa dos 60 anos, cuja experiência de vida pelo discurso que apresentava, pouco teria ido além de longos anos de confronto com a secretária e o caruncho da madeira, mas que tinha umas angústias existenciais e uns vaipes filosóficos de vez em quando, possivelmente para quebrar a monotonia do dia-a-dia: “cada vez compreendo menos os homens... os de Leste querem vir para o Ocidente e os que cá estão não se sentem cá bem, vá-se lá perceber isto! Ninguém se sente feliz onde quer que esteja, não dá para entender! Mas o que é que os homens querem afinal, vocês sabem-me dizer?”
E no meio destas dúvidas e angústias existenciais do
responsável da ONU, Armando e Faustino lá formalizaram o seu pedido de
Refugiados, que seria aceite alguns dias depois. Estavam finalmente legalizados
e podiam movimentar-se por toda a Europa sem barreiras nem fronteiras, excepto
para Portugal naturalmente. Bruxelas seria agora o seu porto de abrigo e o seu
poiso dali em diante.
As primeiras notícias começavam a chegar de Portugal. A deserção de Armando tinha caído como uma bomba em Alcoutim com muita incompreensão à mistura, o que era natural. Desde “traidor à Pátria” a “cobardola com medo da guerra”, sussurrava-se de tudo um pouco à boa maneira alcouteneja. Alguns até garantiam que ele tinha ido fazer a guerra para Argel que tinha acabado 10 anos antes, mas que pelos vistos em Alcoutim ainda continuava, pois tinha tido um grande eco para aquelas bandas não se sabe bem porquê.
Armando sabia compreender aquelas incompreensões passe a
redundância e não lhe ficava a mais pequena mágoa pessoal contra aquela gente com
quem tinha crescido, de quem gostava e por quem tinha um enorme afecto. Na
realidade tinha plena consciência da força da ideologia conservadora dominante
e do matraquear há quase 50 anos sempre na mesma tecla do “Deus, Pátria e
Autoridade” e o tempo que estas coisas levam a mudar!
Por outro lado conhecia perfeitamente o habitual cochicho
alcoutenejo próprio dos meios pequenos aonde não acontece quase nada e a que
achava imensa graça. Costumava responder aos críticos que o acusavam de não
conhecer aquela gente e de gostar de gente falsa: “se a gente também não faz um
bocado de má língua e fofoca, o que é que andamos a fazer cá neste mundo?”
Ironia do destino, na realidade pouco mais do que o Padre da
altura teria compreendido a sua atitude e ousado ir felicitar eufórico o pai de
Armando, pela decisão que o filho tinha tomado. O Cabo da GNR foi
psicologicamente abalado informa-lo de que tinha um mandato de captura para o
filho: “nem sei como lhe hei-de dizer isto!” começou assim a conversa. “Não
diga nada homem, que eu já sei tudo... respondeu-lhe o pai de Armando,
aliviando o Senhor daquela situação desagradável.
Pelo contrário, as forças oposicionistas espalhariam
rapidamente a notícia pelo Algarve e pelo Alentejo. O cargo de alguma
importância local que o pai de Armando desempenhava na altura, serviria às mil
maravilhas de caixa de ressonância dando uma força e uma visibilidade à
notícia, que seria impossível de outra maneira – mais uma vez uma coisa má
acabava por ter o seu lado bom - o que levaria uma brigada da pide a
deslocar-se a Alcoutim para negociar com o pai de Armando o seu regresso, com a
garantia de que nada lhe aconteceria, para colocar um ponto final naquela
derrota pública local e certamente fazer posteriormente o contra-ataque ideológico
em prol do regime. Naturalmente que o assunto morreria por ali, pois Armando só
mais tarde viria a saber destas peripécias, quando foi visitado pela mãe um ano
mais tarde.
Mesmo em Bruxelas teria oportunidade de confirmar aquele
impacto regional da sua deserção, quando visitava certo dia a mãe de um amigo
natural da Vidigueira e que nem conhecia Alcoutim. Quando Armando lhe perguntou
como é que as coisas iam em Portugal a Senhora respondeu: “vão muito mal amigo,
aquilo está tudo a desfazer-se, veja lá que até já o filho do Presidente de
Alcoutim desertou!”. Armando riu-se e apresentou-se à Senhora como deve ser.
Foi uma gargalhada geral!
Armando e Faustino depois de terem decidido fazer de
Bruxelas o seu novo poiso, naturalmente saíram de casa dos amigos que os tinham
acolhido e começavam a organizar as suas vidas, alugando a sua própria casa.
Contudo ao fim de menos de 1 ano, separaram-se por divergências profundas de
concepções do mundo e da vida. Tinham optado por diferentes modos de vida.
Faustino começava a afastar-se daquela comunidade que o tinha acolhido e a
deixar-se deslumbrar com a vida marginal de Bruxelas e de Amesterdão que o
encantava e que visitava regularmente.
E assim por ali andaram, cada um por seu lado quase 5 anos
que lhes pareceram uma eternidade, até que o 25 de Abril lhes abriu as portas
do regresso. Armando saberia do acontecimento logo às 7 horas da manhã quando
entrava para o trabalho, por intermédio de um operário espanhol amigo que tinha
ouvido na rádio, notícias de movimentações militares em Portugal. Informou
de imediato os colegas portugueses que ali trabalhavam, tendo decidido entre
eles eleger um dos operários mais esclarecidos da fábrica, para consultar a
comunidade e tirar a limpo o que se estava a passar.
As notícias que trazia a meio da manhã eram animadoras,
falando de grande adesão popular ao Movimento Militar em todo o país. Portugal,
os Capitães de Abril e o povo português mereciam nesse mesmo dia honras de
primeira página, em todos os jornais franceses e belgas. Era um espectáculo ler
aquilo! Desta vez parecia que não era “a morte que tinha saído à rua num dia
assim” como cantava o Zeca Afonso na altura. Era a Grândola e o Povo que tinham
tomado conta dela e ameaçavam tomar conta da própria vida.
A comunidade portuguesa viveria os acontecimentos com
entusiasmo e como se neles estivesse a participar colada ao rádio e lendo
jornais, embora com alguma desconfiança à mistura pois quando a esmola é
grande... e com o receio natural de que se tratasse de uma operação de
maquilhagem para continuar tudo na mesma, pois o homem que se dizia estar por
detrás do movimento não lhes merecia grande credibilidade pelas suas conhecidas
ideias neo-colonialistas.
Por isso nada de precipitações, era preciso seguir os sábios
ensinamentos de S. Tomé, até mesmo aqueles que não fossem católicos! No entanto
pelo sim pelo não, sentiam que era melhor começar a fazer as malas...
(CONTINUA)