Desenho do alcoutenejo João Pedro Rodrigues |
Mais um ano se passou e mais uma vez não dei cumprimento
àquilo que sempre pensei fazer, dar testemunho escrito do que aconteceu em
Alcoutim após o estalar do Movimento das Forças Armadas.
Pensei sempre fazê-lo com o afastamento do tempo, se a vida
e a saúde tal me viessem a permitir.
Trinta e oito anos estão passados, distância suficiente para
cumprir essa intensão e a vida deixou-me aqui chegar com memória e outras
condições para o realizar.
Não irei apresentar datas e documentação, sirvo-me da
memória e da minha visão dos factos. Possivelmente a documentação básica terá
desaparecido, como é vulgar acontecer por toda a parte e em Alcoutim ainda mais!
A vila e o concelho passavam por uma letargia confrangedora
motivada, entre outros factores, pelo abandono do rio como via de penetração,
deixando a povoação de ser o armazém do concelho. A abertura das duas estradas
“matou” a vila, pois as coisas começaram a chegar primeiro às aldeias do que à
sede do concelho!
A escola, com um único professor, era mantida a custo pelos
filhos dos guardas-fiscais e com artimanhas bem conhecidas, mas muitos destes,
logo que lhes fosse possível e muitas vezes através de promoções, fugiam para o
litoral onde podiam dar outro futuro aos filhos.
Nessa altura, já os jovens do concelho de Alcoutim
dispensavam o ingresso na Guarda-Fiscal para rumarem ao litoral onde os seus
braços eram precisos na hotelaria e serviços similares, enquanto os mais idosos
e menos habilitados transferiram a força que utilizavam no amanho dos campos
para a construção civil. Todos conhecemos industriais destes ramos espalhados
pelo litoral, nomeadamente, na zona do sotavento, daqui oriundos e que à custa
do seu esforço conseguiram vencer na vida.
A Secção da Guarda-Fiscal raramente tinha um oficial a
comandá-la e as repartições públicas estavam muitas vezes desprovidas das suas
chefias efectivas. Havia gente, que no dia em que tomava posse, apresentava
imediatamente o pedido de transferência.
Paçod do Concelho, des. de JV |
A Câmara Municipal tinha um quadro de seis funcionários e de
uma maneira geral não havia chefia efectiva. Isto chegava muito mal para manter
a porta aberta. O orçamento rondava os 400 contos e muito esticado dava para
pagar a estes funcionários!
Não havia dinheiro para nada. Os dejectos da canzoada e as
ervas daninhas proliferavam pelas ruelas da velha vila.
Chegou a não residir, em todo o concelho, um único licenciado!
Nem mesmo médico! As certidões de óbito eram passadas pelo regedor da freguesia,
como a Lei então mandava!
Salvo raras excepções, só permanecia na vila quem não tinha
qualidades para progredir nas suas carreiras profissionais.
Foram muito poucos os que depois de adquirirem formação
regressaram à sua terra!
O saneamento básico (água, energia eléctrica e esgotos)
tinha chegado à vila em 1965,
a última sede do concelho a receber tal benefício! Havia,
desde os meados do século passado, a estrada que ligava Mértola a Vila Real de
Santo António passando por Castro Marim, deixando Alcoutim a seis quilómetros
como beco sem saída! O IC 27 ainda a deixou a uma distância maior.
A acção de um filho da terra e a população com contribuições
monetárias ou em trabalho possibilitaram a construção de um pequeno posto
receptor de sinal que dava para ver televisão, porque nem isto era possível com
um mínimo de qualidade.
O dia 25 de Abril, dia de São Marcos, é um dia movimentado
em todo o concelho, devido a realizar-se a maior feira que tem lugar na aldeia
do Pereiro.
À hora de abrir a repartição, lá estava para cumprir a minha
obrigação. Quando apareceu o colega de trabalho, que se deslocava da então vila
de Olhão e que trazia o rádio ligado, deu-me logo a novidade da confusão que ia
pelo país. Este colega tinha passado pela guerra colonial.
Para mim, não causou grande admiração, pois tinha acabado de
ler a 2ª edição de Portugal e o Futuro,
de António de Spínola, entretanto, retirado de circulação e que adquiri, vejam
lá, na própria vila de Alcoutim, onde não se vendia um apara-lápis, quanto mais
um livro!
Já partiu, por vontade própria, quem mo arranjou, facto que
nunca esqueci.
O livro, que hoje só tem um significado histórico, ainda que
extremamente moderado, foi como uma bomba na sociedade portuguesa mais
adormecida.
Para quem o lesse, era fácil calcular que algo estaria em
movimento e quando apareceu o Movimento das Caldas, confirmou o que a
generalidade das pessoas pensava. Por tudo isto, a informação que o meu colega
me tinha dado não me causou grande surpresa. Depressa me desloquei a casa, a
uns duzentos metros do local de trabalho e fui buscar o rádio para ouvir as
notícias.
A maioria da população, que na altura rondava as três centenas,
tinha-se deslocado para a Feira de S. Marcos, aproveitando os transportes
especiais, mas pagos.
A força policial de nada sabia, esperando, contudo, a todo o
momento, receber as ordens habituais para a repressão necessária a qualquer
hipotética manifestação e à prisão de alguém que tivesse dado a entender que
“politicamente” estava com o movimento.
A verdade é que as horas foram passando e as notícias não
chegavam e a conversa começou a mudar um pouco de tom, mas sempre na esperança
de receber as novas que se desejavam.
Nos anos anteriores, era hábito ir ao S. Marcos após o
encerramento de repartição, mas desta vez não havia tempo para isso, era
preciso estar atento ao que se ia passando.
Nos dias seguintes, na vila, não se ouviam comentários de
uma maneira geral e as pessoas mais idosas nem sequer queriam ouvir falar em
tal, afastando-se quando se pretendia falar no assunto, na grande maioria,
estas pessoas tinham passado pela Guarda-Fiscal e Guarda Nacional Republicana e
muitas ficaram “vacinadas”.
Geralmente, como sempre acontece, eram os jovens os mais
entusiasmados, aparecendo por vezes os excessos, isto apesar da tentativa dos pais
os apaziguarem.
Começaram a surgir as escritas pelas paredes, que hoje tenho
pena de não ter fotografado, ainda que fossem comuns às feitas nos outros
sítios e que os jornais traziam sem as peias da censura.
Há uma que não me esqueço pelo erro ortográfico: Fora com o Provedor da Mesiricórdia. E sei quem o escreveu, hoje, um “cinquentão” há
muito afastado da vila pela sua actividade profissional.
Era notória a falta de consciência política das pessoas.
Como opositores ao regime era notada a Família Rosário, principalmente,
Francisco Madeira do Rosário, (que já não vivia na vila, mas continuava a ser
figura local de referência) mais dois anciãos, um que chegou a pertencer à
comissão administrativa da Junta de Freguesia, dados como simpatizantes do Partido
Comunista, claro além de Carlos Brito, nome que até aí quase não se podia
pronunciar na vila, ainda que fosse conhecido de todos. Eu não o conhecia.
É evidente que havia gente que apesar de não ter qualquer
ligação à oposição também não a tinha à situação, desejando a implantação de um
regime democrático.
É preciso não esquecer que existia formalizada a União
Nacional já designada por ANP com os seus militantes, como não podia deixar de
ser e até a existência de legionários, ainda que não tivesse visto nenhum
fardado. Conheço contudo dois casos em que foram fazer a entrega das fardas. Igualmente
alguns alcoutenejos exerceram funções com maior ou menor notoriedade na
PIDE/DGS.
Hoje há quem pretenda esconder estes factos!
Reuniram-se meia dúzia de habitantes da vila, não mais, cujos
nomes não interessa referir, que procuraram auxílio de alcoutenenses residentes
noutros locais e com a ajuda do MDP/CDE (Faro) organizaram um grande plenário
na vila de Alcoutim que levou à nomeação de uma comissão administrativa
constituída por um representante de cada freguesia e que entre si escolheram,
por voto secreto, o seu presidente, no caso, o representante da freguesia de
Alcoutim, Fernando Lopes Dias. Representava a freguesia de Martim Longo,
Joaquim Pinheiro Moreira, a de Vaqueiros, Manuel António Guerreiro, o do
Pereiro, penso que era Henrique António e a de Giões um indivíduo acabado de
chegar à aldeia após a sua reforma como funcionário de uma escola de Lisboa.
Nesse plenário, que reuniu centenas de pessoas na Praça da
República, esteve presente Carlos Brito que usou da palavra e naturalmente foi
muito aplaudido. O plenário teve a presença e o apoio do MDP/CDE de Faro. Foram
vários os oradores , que a esta distância não posso precisar, mas tenho a
certeza que também usou da palavra o Eng. José do Rosário. Presidiu à Mesa o
Dr. Castro Fernandes.
Isto aconteceu, aproximadamente, um mês depois do 25 de
Abril, tendo sido das primeiras Câmaras do País a passar por esta situação, o
que seria impensável para muita gente.
Entretanto, nas freguesias foram efectuados, igualmente,
plenários mais ou menos democráticos e constituídas comissões administrativas.
Depois foram as transformações e situações inerentes a tal
período, com avanços e recuos. Também por aqui se falou nas célebres listas de
pessoas a abater se a mudança política tivesse pernas para andar, o que não
aconteceu.
Placa toponímica que substituiu a histórica existente |
Nesta altura, já se notava a mudança de casaca em todos os
sectores e começava o burburinho dos partidos políticos com a tentativa notória
e legítima de implantação do MDP/CDE.
O Partido Comunista, muito activo e com novos militantes,
era o único organizado, mas nunca obteve votos significativos do povo, ainda
que tivesse conseguido eleger por duas ou três vezes o seu cabeça de lista como
vereador no executivo municipal, o que deixou de acontecer a partir de 1985.
Era compreensível que os partidos políticos tentassem obter
no concelho estruturas próprias, até porque, entretanto, chegavam as eleições.
Enquanto alguns se filiaram neste e naquele, outros optaram por manter a sua
independência, o que não significa que escondessem as suas preferências. São os
independentes que dão a cara, enquanto há os independentes que a não dão e
desejam estar bem com Deus e com o diabo.
Se fizermos uma retrospectiva, vamos encontrar hoje gente
que depois de dar a cara pelo Partido Comunista, fá-lo depois pelo PSD com
passagem pelo PS. Outros, que desde a UDP já votaram no PCP, PS e PSD, segundo
afirmam, mas grande percentagem das mudanças, incluindo militantes, faz-se por
benesses que o partido do poder lhes oferece, seja ele qual for, estando
preparados para num próximo volte face, actuarem com a mesma desfaçatez e com o
“orgulho”de quem motivou a mudança.
Isto não é de agora, é de sempre, desde o mais alto nível ao
mais baixo.
Quem não conhece, a nível nacional, figuras gradas do
Partido Comunista que se passaram para o PS e em maior número para o PSD onde
foram recebidos de braços abertos! E aqueles que vieram dos grupelhos de extrema-esquerda
e hoje enriquecem, nomeadamente, o PS e o PSD!
Há outros que mudaram o seu sentido de voto mas têm vergonha
de o dizer, ainda que o demonstrem. Estão no seu pleno direito.
Se todos conhecemos isto a nível nacional, é evidente que o
mesmo acontece a nível local em qualquer parte do País.
Se forem verificar as listas apresentadas desde o 25 de
Abril para os órgãos do poder local, verificarão com muita facilidade as
mudanças operadas e não atribuam a mudança à circunstância de serem
independentes, pois não é a filiação que dá consciência política. Mudam
conforme os seus interesses e da sua família e isto acontece porque as figuras
gradas dos partidos os recebem de braços abertos, esquecendo-se que na primeira
oportunidade mudam novamente. Os caciques não existiram só durante o
liberalismo e a 1ª República, são e serão de sempre e hoje são bem conhecidos.
Lista vencedora das 1ªs Eleições |
Outros concorrem como independentes, mas quando são eleitos
não mantêm essa independência e filiam-se logo no partido que os elegeu, isto
quando existem contrapartidas económicas. Conheço, contudo, e no poder
autárquico quem nunca o tivesse feito, honra lhe seja dada.
Os “revolucionários” foram engolidos pela própria revolução
e depois de um período de transição, é a vez dos que estavam no campo oposto de
se assenhorearem do poder.
Este é o meu testemunho sobre o 25 de Abril em Alcoutim.
Haja quem divulgue o seu, pois não fui só eu que o vivi.