quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

CRÓNICAS E FICÇÕES SOLTAS – ALCOUTIM – RECORDAÇÕES, XLII


Escreve

Daniel Teixeira




Alcaria Alta

TEARES E RETALHOS

A Ti Maria Antónia da Ladeira era chamada da «ladeira» porque vivia numa casa na ponta de um pequeno cerro que conjuntamente com os outros faziam o aglomerado de cerros maior onde estava «plantado» o Monte de Alcaria Alta.

Em teoria um conjunto de montes chama-se de serra, mas seria abusivo chamar serra ao monte onde estava situado o Monte de Alcaria Alta até porque a altitude não era significativa, embora isso tivesse lugar, a pouca altitude, só em termos gerais.
A altitude era enorme para quem tinha de subir e descer aqueles montes e mesmo andar dentro do Monte aos altos e baixos era bastante cansativo. Na altura de miúdo e jovem não reparava muito nisso, mas já depois de uns quantos anos ininterruptos de cidade fomos lá com um casal amigo, almoçámos na Portelinha (atrás da venda do Zé Artur) e subimos ao Castelo (casa da minha avó - já falecida na altura) para dormir a folga e dormimos todos quatro horas de enfiada, sem dar por isso.

Não fizemos no total mais de quinhentos metros e quando acordámos foi despedirmo-nos das pessoas, pegar no carro e arrancar. Acabámos por fazer uma outra paragem, ainda com cansaço, com um desvio para Cacela Velha, onde na altura se comia marisco (ostras incluídas) por bons preços, aliás na altura era quase de borla, comparativamente.
Fiz o reparo sobre a ladeira e a Ti Maria Antónia - da Ladeira - porque não havia, na altura, mais Maria Antónia nenhuma no Monte e estes acrescentos sobre as localizações das suas moradas tinham precisamente por objectivo fazer desde logo distinguir as pessoas.

Talvez a senhora Antonica Vilão fosse Maria também mas não havia razão para que esta «Ladeira» como alcunha complementar tivesse lugar porque a outra, a ser Maria, também, era a senhora Antonica e assim a conheci desde sempre. Um irmão dela era Antonico (mas não era Vilão) e um filho também se chamou Antonico (Vilão).
Já falei nestas crónicas sobre isto: Ti Mari Joaquina do Rossio, Ti Mari Joaquina da Praça, enfim, para evitar estar a utilizar os apelidos (Guerreiro, Pereira, etc.) havia esta forma simplificada de nomear as pessoas.

Claro que estas denominações serviam para conversas entre terceiros mas não serviam para ter com a própria pessoa. A Ti Maria Antónia da Ladeira, em presença era a Ti Maria Antónia, unicamente, nem se justificava que se acrescentasse «da Ladeira», por exemplo estando-se em presença da própria pessoa.

Agora me lembro que os homens tinham a honra de serem chamados por nome e apelido e nem me lembro de haver necessidade de acrescentar o que quer que fosse talvez porque - só pode ser - não havia coincidências de nomes e apelidos. O meu avô era o Ti Dionísio e havia no Além o Zé Dionísio que não era «Ti» porque na altura ainda era bastante novo (aqui bastante novo quer dizer 40/50 anos).

Pois bem e regressando à senhora, ela tinha um tear e isto de ter um tear implica que se seja tecelão, mais pelo facto dele ter de servir para alguma coisa pois ao que parece era uma máquina bastante cara, complicado de usar e muitos deles resultavam de heranças de mãe para filha.

Acho que no fundo todas as mulheres sabiam tecer mas havia as que tinham tear e as que não tinham. O maior trabalho era realmente armar os fios e as linhas e o resto, que não era pouco, era dar ao pedal e aquela coisa pesava mesmo e devia ser bastante custoso levar um dia inteiro de trabalho naquilo.

Manta de Lã
A passagem daquilo a que eu chamo «navette» (vai - vem) que é uma peça em madeira que vai e vem com o fio que cruza e percorre sucessivamente em largura a peça a tecer e assim vai até ao final da tecelagem do pano em comprimento era impulsionada da esquerda para a direita do pano por um misterioso carolo que resultava também do movimento da pedalada.
Ou seja, a pedalada não só fazia alternar cruzando em x sucessivos os fios para o tecido nos bastidores (lã, retalho ou o que fosse) mas também accionava uma engenhoca que dava a pancada no vai - vem e o levava até ao final (ponta direita).
Ora o meu problema aqui, e de notar que faço questão de não ir consultar nenhum canhenho ou a Net sobre esta coisa, é o de saber como vinha depois o vai - vem da direita para a esquerda do pano e explico porquê:
Eu apesar de não ser muito aconselhado a um homem (mesmo miúdo) estar a apreciar o trabalho das mulheres, gostava de ver a senhora a tecer e não ela em especial mas ela estava muito tempo no tear ao contrário das suas colegas que conhecia que o faziam esporadicamente. Aliás era à Ti Maria Antónia da Ladeira que se mandava fazer as nossas mantas, fossem elas de lã ou de retalho.

De esclarecer que o retalho, talvez julgado um tecido pobre, agora recuperado em termos de prestígio pelo advento do turismo, era obtido durante o ano através do recorte de bocados de tecido que sobravam dos afazeres da minha mãe que era costureira também e teve como aprendizes as minhas primas quase todas.

Eu mesmo aprendi a fazer uma série de coisas que me desenrascaram e desenrascam bastante, tal como cozer botões, zippers, fazer bainhas, etc. Tudo à mão, no meu caso, nunca consegui acertar com o pedalar da máquina de costura...

As mantas ficavam giras porque à partida os novelos dos retalhos eram desde logo divididos por tonalidades e embora houvesse uma forte tendência para o abstraccionismo no conjunto talvez estivesse aí também uma parte da sua beleza.
Pois bem e voltando à navette (vai - vem) eu lembro-me que a Ti Maria Antónia da Ladeira aproveitava a minha presença por ali para me pedir para lhe passar o tal vai -vem da direita para a esquerda. Nunca procurei saber mais sobre isto mas acho que quando eu não estava presente ela tinha de se levantar do banco e ir ela mesma fazer esse trabalho.

Ora, se assim fosse, ela não só tinha o esforço de dar a pedalada (os bastidores eram enormes e logo deviam ser pesados) como ainda tinha de fazer quilómetros por dia para ir jogar o fio (na navette) da direita para esquerda.

Todas as histórias têm um final feliz e esta também vai ter (mesmo que eu esteja enganado quanto á parte da navette) : o marido dela, trabalhador nas suas propriedades no campo, era como todo o pessoal do Monte...pouco gastador ou gastando o estritamente indispensável e vendendo as suas alfarrobas, amêndoas, azeitonas, etc.
Alguém um dia, um parente salvo erro, que trabalhava num Banco disse-lhe que era melhor ele guardar o dinheiro no Banco, que ter o dinheiro em casa não era grande coisa, apesar dos tempos serem ainda bem diferentes, etc.

Ao que parece ele foi buscar o dinheiro que tinha em vários locais (buracos nas paredes como era uso) e o tal bancário ia caindo para o lado.

Os números aventados foram de diversa ordem, isto lá para os anos 60's, mas ficou assente por alguém que viu o talão do depósito que eram setecentos e cinquenta contos mais ou menos.