Escreve
Amílcar Felício
Rua das Portas de Mértola |
Imaginei-me sentado entre os homens no muro que dá para a Ribeira em frente à casa da Tia Catarina das Portas, como acontecia noutros tempos já bastante recuados. Para ser mais preciso, estaríamos para aí na segunda metade da década de cinquenta do século passado e os homens já comentavam uns para os outros de que se aquilo continuasse assim, qualquer dia quando aqueles velhos desaparecessem não haveria mais braços para trabalhar no campo. Ainda por cima, acrescentavam eles, agora já não eram só os moços que iam para a tropa e que por lá arrumavam a vida, como também famílias inteiras que tinham começado a zarpar! E o pior é que isto estava a acontecer, diziam eles, quer na Vila quer até nos próprios Montes!
Aquele muro logo à entrada da Rua das Portas de Mértola, era um dos lugares nevrálgicos da Vila e o poiso dos mirones e dos linguarudos que por ali se juntavam, nos dias em que o calor apertava e que até cortava a respiração. Tinha sido construído pela Empresa dos Pataroxa há cerca 10 anos atrás, na mesma altura em que rasgaram todos os quintais existentes junto ao Esteiro, para construir o prolongamento da estrada até à Praça e que só chegava naquela época até à entrada da Vila. Demoliriam também as casas em frente à Venda e à Mercearia do Senhor Simões, fazendo naquele local o Ajardinado a 45º que ainda por lá existe e murando naturalmente a entrada da Rua. Toda a pedra tinha vindo da Pedreira do Senhor Felício que ficava entre a curva da Amoreira e o Aqueduto das 3 Bocas e que foi comprada a 1 escudo a tonelada ou o metro cúbico, já não me lembro ao certo e transportada pelos famosos camiões do Pataroxa que baptizariam para sempre o meu amigo do peito, o Zé Pataroxa filho do Lázaro e da Ana, que corria descalço pela Vila naqueles tempos gritando que “aqui vai o camião do Pataroxa!”
Sentados no muro, esperávamos pela primeira brisa da tarde que vinha da Ribeira e que deveria estar a chegar a qualquer momento, naquele mês de Agosto abrasador. O Sol parecia mesmo que se estava a preparar para dormir nos Moinhos derrubados da Corte do Tabelião e as sombras dos que chegavam à Vila, eram àquela hora do dia muito maiores do que eles próprios, dando-nos a sensação de que vivíamos numa Vila de gigantes. Eram quase 8 horas da tarde mas ainda estava uma calma enzorrada que mal se conseguia respirar e que até nos fazia sentir almareados!
O Chico e o Manel Balbino aproveitando as marés vivas e a preia-mar que dava lá para as 9 horas, subiam lentamente a Ribeira numa das suas lanchas para deixa-la em seco nos eucaliptos do Senhor Joaquim do Rosário, perto das passadeiras do Pego Fundo, para reparar alguma racha ou pequena fresta de última hora que se tinha aberto com aqueles calores. O Chico de remos nas mãos lá ia dando umas remadas de vez em quando ao sabor da corrente e o Manel com uma antiga lata de cavalas em conserva que levaria entre dois a três litros, lá deitava para a Ribeira a água que ia entrando para a lancha.
No outro lado da Ribeira o Ti António Brandão e os filhos, mais novos do que eu uns 4 ou 5 anos pois o Chico teria para aí uns 6 anos e o Américo uns 7 ou 8, ainda regavam as laranjeiras. Nunca lhes sobrava tempo para a brincadeira! A mãe, a Tia Catarina Brandão já tinha passado há um bom bocado para casa. Vinha quase sempre mais cedo para fazer o jantar. Um pouco mais adiante, perto dos escombros da velha Igreja do Rossio, o Manel do Rossio lá ia atrás das vacas do Ti Gato encaminhando-as lentamente para a ordenha habitual da noite, pois a Tia Maria do Leite a mulher do Ti Valentim, ainda tinha que fazer a distribuição do leite pela Vila.
Os netos do Ti Gato, o Martinho – o picada da mosca – e o irmão mais novo o Eduardo, também lá iam atrás das vacas para dar uma ajuda. As primas, a Liete e a irmã estavam um pouco mais à frente já ao pé das casas, com os cântaros de lata na mão que o Ti Zé Emídio fabricava. O Martinho tinha ficado conhecido pelo “picada da mosca” porque todos os anos quando lhe pedíamos na Escola para trazer umas laranjas do Rossio, desculpava-se sempre com o mesmo argumento “de que este ano não podia trazer nada, pois estavam todas picadas da mosca”.
No lado de cá da Ribeira no Esteiro, a Tia Libânia e o Ti Marreiros aproveitavam até ao último raio de sol e às vezes até entravam pela noite dentro para acabar a rega do laranjal. Os cães do Ti Robalo não paravam de ladrar à passagem das mulheres para o Poço das Figueiras, no meio daquele reboliço de fim de tarde e a Tia Emília da Horta, a Ivone, a Maria de Lurdes e o Martins que tinha vindo substituir o Manel Noronha, andavam numa fona a fazer o jantar, a arrumar as bestas ou a tratar das galinhas e dos porcos. Na Eira Branca enxergavam-se alguns vultos de um lado para o outro, sem se perceber muito bem o que é que andavam a fazer. Deveria ser a Barborinha, o marido o Ti Zé e o filho, o meu grande amigo Zé Martins, que andavam na lida do fim do dia.
O Ti Zé Joaquim Bruxo do Enxoval também já lá ia apressado estrada abaixo direito à lancha, para ver se ainda aproveitava quase uma hora de maré para chegar a casa antes que ela virasse, com dois grandes cestos do avio que tinha vindo fazer à Vila. Vinha sempre aviar-se à mercearia do irmão o Ti António Joaquim, menos o tabaco que ele próprio fabricava, secando umas ervas de campo muito bem cheirosas que embrulhava depois na mortalha. Também o meu amigo de Escola o António, o Brejeiro como a gente lhe chamava, tinha acabado de passar com o pai que tinha vindo vender umas hortaliças, uns ovos e umas galinhas à Vila e lá iam os dois sempre vestidos de preto e de chapéu na cabeça direitos ao Cerro da Mina, que tinham que subir a pé por uma vereda de cabras a caminho do Brejo aonde moravam. O preto era a sua sentida e eterna homenagem à esposa e mãe que tinha morrido há já alguns anos.
Mas... com o regresso a casa, a Vila ganhava outra energia. Para acabar o dia faltava apenas tratar dos animais e do jantar. Depois eram os longos serões à conversa nos poiais das casas ou nas pequenas cadeiras artesanais feitas de loendro e de junco, a que se lhe juntava de vez em quando umas cantigas alentejanas que ecoavam pachorrentamente por aquelas ruas adiante e que muitas vezes iam para lá da meia-noite, à espera que o fresco da madrugada chegasse mais cedo nas noites mais acaloradas. Mas ainda faltava chegar muita gente à Vila como veremos na próxima crónica...
(continua)