Escreve
M Dias
O monte dos cheiros e dos sons. Foto JV |
Recordo os cheiros e os sons da
minha infância e conservo deles uma memória viva e doce A vida na serra,
proporciona-nos experiências de tocar, cheirar, ouvir, manipular o que é mesmo
natural, autêntico! Os cheiros, os sons e as texturas que a natureza nos
oferece na sua espontânea naturalidade em cada estação do ano, (excluindo alguns
poucos cheiros e sons desagradáveis que também não esqueci, como o cheiro do
pocilgo, ou da matança do porco, e o som dos trovões e dos foguetes), as minhas
memórias sonoras, tácteis e olfactivas são doces recordações. No Verão o cheiro
das searas ceifadas, dos funchos, e junto do barranco os aloendros floridos,
dos figos a secar ao sol, o som das pegadas das bestas e do linguajar dos donos
que as conduziam, dos chocalhos do gado que à tardinha regressava aos currais,
o zumbir de uma mosca no silêncio no quarto quando dormíamos a sesta (conhecida
por folga), o cantar das cigarras em dias de muito calor e dos grilos à noite
ao serão, o canto do galo ao amanhecer e da galinha quando acabava de pôr o
ovo, dos cães que ladravam e corriam desenfreados atrás de um pobre gato, e o
cheiro da terra molhada, quando ocasionalmente "desabava" uma
trovoada de Verão. Chegava o Outono com os seus tons amarelados, muitas árvores
já despidas, as primeiras chuvas, sempre insuficientes que mal faziam correr os
estreitos regatos, a terra com manchas pretas das queimadas e o cheiro da lenha
a arder, fazendo subir curvilíneas colunas de fumo no ar. Por essa altura
começavam as lavouras e nesses anos ainda se ouviam as charruas e o lento
caminhar das bestas a sacudir as orelhas, quando as peganhentas moscas as
incomodavam.
Foto de M Dias, Jan. 2013 |
Cheirava a terra lavrada, e
muitas dezenas de passarinhos procuravam aí o petisco que saía da terra
remexida. Ouviam-se asas de grandes bandos a bater! As primeiras azeitonas eram
apanhadas e pisadas (britadas) para daí a poucos dias, frescas e saborosas
serem consumidas, muitas vezes só com pão e tantas vezes serviam de almoço, ou
merenda! Chegavam também as belas laranjas que cresciam em abundância até ao
Inverno. No Inverno chovia bastante, corriam os barrancos e o cheiro húmido da
água a correr batendo com força nas grandes pedras, parecia produzir fumo e lá
íamos nós as miúdas pequenas a correr para apreciar aquela maravilha! Também o
orvalho, de manhã, quando íamos para a escola cheirava bem e fazia esquecer a
preguiça de levantar, quando o sol rompia e inundava aquelas paisagens de ervas
carregadas de gotículas penduradas, lembrando rosários ou colares de pérolas
Mais uns dias de escola e
chegavam as férias do Natal. Dormia-se de manhã mais um bocadinho, estava muito
frio e muitas vezes acordávamos com o angustiante grunhir do porco a tentar
lutar contra os braços de meia dúzia de homens que o seguravam e já lhe tinham
passado uma grossa corda pelo focinho! Metíamos a cabeça o mais possível
debaixo das mantas, tentando não ouvir os gritos do pobre animal cuja vida
terminaria daí a poucos minutos.
Horrível mesmo para mim era
aquele cheiro do sangue do pobre bicho ao lume a cozer. Apreciado petisco para
a equipa de “assassinos”!
Esta época de matanças de porco,
nunca mais acabava!
Voltávamos à escola e ainda o ano
começava e o Inverno longe de acabar, mas já se viam naquelas chapadas
(encostas viradas a sul) manchas esbranquiçadas de amendoeiras a florir, que ao
aproximarmo-nos, nos presenteavam com o seu suave e doce aroma. Junto ao chão,
plantas rasteiras, carregadas de flores, miudinhas, brancas, e depois as
amarelas das azedas junto dos caminhos.
Estava próxima a Páscoa! O sol
começava a aquecer, andorinhas passavam em voo rasante à nossa frente, muita
passarada chilreava poisada nas árvores e começavam a construir os ninhos!
Floriam o alecrim, os rosmaninhos,
as estevas e outros pequenos arbustos que ladeavam o caminho fazendo autênticas
barreiras com muitas abelhas e borboletas a desfrutar das suas flores e do seu
perfume.
Ao longo do ano, quase dia sim,
dia não, alguém acendia e aquecia o forno, comunitário e não tardava a ser”
inundado”todo o monte pelo belo cheiro do pão acabado de cozer!
Assustavam me as lagartixas que
mal o sol começava a aquecer, corriam atravessando de pedra em pedra, muitas
vezes sem respeitarem os nossos pés, fazendo com que eu tremesse de medo! Mas,
teria muitas dúvidas em aceitar trocar por outra esta minha saudosa infância!