segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

PARA, EM E DE... ALCOUTIM

(PUBLICADO EM “POVO ALGARVIO”, Nº 2027, TAVIRA, 21 de ABRIL DE 1973)




Escreve

Álvaro Pais




... ... ... ...

De novo na estrada. Uma guinada a leste. Vamos em direcção a Alcoutim, a «vila pequenina», como estamos, acostumados a ouvir chamar-lhe ternamente, em apreciadas colunas deste jornal. Pequenina, mas muito asseada e de uma paz e sossego encantadores, ao menos por já raros neste barulhento mundo em que vivemos. À porta do café três rapazes conversavam pacatamente. Junto do rio, dois guardas vigiavam pachorrentamente. Mas qualquer coisa no ambiente nos sorria, nos acenava, nos acarinhava.
Sei das aspirações de Alcoutim e acho-as justíssimas. Mas que, quando as satisfizerem, não lhe tirem este cunho de graciosidade e precioso arcaísmo, que a distingue entre tantas! Façam-lhe as “armadilhas” do turismo à volta, mas não a abafem, não a desvirtuem, como têm feito a outras terras, não lhe tirem o encanto insubstituível que a reveste.

Dão nas vistas os capiteis das colunas, que separam as três naves, um pouco desproporcionadas, mas interessantes, embora de estilo pouco definido, e uma pia de água benta envolvente e tetralobulada.

A visita tinha de ser rápida e não dava tempo a verificar a exactidão dos apontamentos que outrora tirara, donde constava um baixo relevo no baptistério, colorido e muito aceitável, representando o Baptismo de Jesus, e cercado por uma orla onde se lia a a enigmática legenda: “1663 – Capitulum Sacrosantae Lateranensis Ecclesiae”.Que poderia ter o Cabido da Igreja de Latrão com Alcoutim?

Também anotara duas imagens antigas com interesse – uma Santa Catarina e uma Nossa Senhora com o Menino, a primeira do século XVII e a segunda do XVI. Existirão?

No altar da nave do Evangelho, havia uma telas, muito estragadas – Cristo crucificado, S. Miguel Purgatório e mais três pequenas com imagens de santas mas cobrindo pinturas em tábua muito melhores, Alberto Sousa e eu anotámos que “tudo isto, a não ser aproveitado na reconstrução, devia ir para um museu”. O que lhe teria acontecido?

Havia na igreja mais três painéis de pintura não boa – um Nascimento, uma “Entrega do Escapulário do Carmo” e uma “Visitação”. Todas estas peças, mesmo que não tenham grande valor artístico, têm-no iconográfico e histórico e nunca se devem destruir nem alienar.

É claro que também não pude rever os paramentos e peças de ourivesaria que anotara: uma casulo francesa, do século XVI, com sebastos de veludo, panos laterais de seda lavrada e guarnições de brocatel; e outra casulo verde, também do século XVI, em damasco com sebastos de brocatel; uma custódia de prata dourada, do século XVII, em dois corpos sobrepostos, havendo no superior uma estatueta de N. Senhora da Conceição; dois cálices de prata branca, um liso, outro cinzelado, do século XVII: e um cofre para a guarda da Eucaristia, de prata e madre-pérola.

Os retábulos da capela-mor e da colateral esquerda pareceram-me restaurados, por sinal com desvirtuamento das suas características, principalmente o segundo, que classificáramos como do século XVI ou princípios do XVII, apondo esta observação: “ se não for aproveitado no restauro, deve ser destinado a um museu”.

À saída da paroquial, ainda fui mostrar à minha gente a lápide da Misericórdia a indicar a altura da cheia de 1876 e apontar-lhe, de longe, a pitoresca e algo sumptuosa capela de Nossa Senhora da Conceição, donde se goza razoável panorama do rio, pueblo fronteiriço  de S. Lucar e cerros circunvizinhos.

Propriedade da Câmara Municipal; já existia em 1712 e deve ter sido restaurada logo após a Restauração de Portugal, quando D. João IV difundiu largamente o culto da Padroeira de Portugal, pois certamente é mais antiga, como o afirma o seu pórtico de arco ogival e ornamentos retintamente manuelinos. Lá dentro tem um interessante retábulo de talha dourada e pintada, do século XVII, encimado pelo escudo português coroado, aos lados do qual se vêem a palma e o ramo de cedro – alusões aos passos bíblicos adaptados à Virgem; “exaltada com a palma em Cades e como o cedro no Líbano”.

Nestas evocações chegáramos àqueles três banquinhos frente ao rio, tão acolhedores e onde se deve estar tão bem em noites calmas de verão, quando uns sinos se fizeram ouvir. Instintivamente voltámos os olhos para a torre, mas logo percebemos que o som... vinha de Espanha. Curioso! Estávamos em Portugal, ouvindo tocar os sinos em Espanha! Mas – mais curioso ainda – Começámos a ouvir uma voz que dizia: “En nombre del Padre y del Hijo... “ Um alto-falante transmitia a missa de San Lucar, inundando de religiosidade todo o “pueblo”, os campos, o rio, e a povoação portuguesa fronteiriça. Nós, em Portugal, ouvimos missa em Espanha!

Achei curioso, prático, perfeitamente actualista, “aggiornante” e – vamos lá! – triunfalista (encaixem os “anti”!. Seria muito difícil suprimir, o triunfalismo se é preciso ganhar uma causa! De contrário, virá o “derrotismo”.

Impunha-se a partida, tanto mais se aproximava a hora do almoço, programado para “piquenique”. Este realizou-se bucolicamente junto à ribeira da Foupana e... foi coroado em glória pela garrafa de champanhe com o prior de Cachopo, fidalga e fraternalmente, celebrou a nossa passagem pelo seu “vaticano”, depois de se ter apreciado a obra de persistência e dedicação que representa aquela igreja. Mas isso fica para outra vez!