sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Matança do porco "Suvão" (Cevão)


Pequena nota
Já abordámos este assunto no texto a que demos o título "A matação do porco" e publicado neste espaço em 16.11.2011.
Com esta publicação não se trata de uma duplicação mas sim de um complemento ao que estão escrevemos  pois o espírito de observação e a linguagem utilizados são diferentes.
Qualquer alcoutenejo que se preze revê-se neste texto de António Afonso.
JV




Texto e Ilustração 
de
António Afonso



No monte onde nasci e também um pouco por toda a Serra Algarvia a tradição era cíclica e anual, exigindo ritual seguinte:
Todos viviam da agricultura de subsistência, da pastorícia, alimentavam-se essencialmente do que a terra produzia, à custa de muito trabalho; quase toda a carne consumida era de suíno, embora se abatesse um galo pelo Entrudo ou alguma galinha em dia de Festa, um borrego (malato) no final das ceifas (adiafa), por tal facto, era preciso providenciar a compra de um porquinho preto (bácoro) no início da Primavera ou, o mais tardar, na feira de S. Marcos no Pereiro.

 Depois, era necessário chamar o capador que procedia à extracção das glândulas reprodutores do animal, para que este medra-se e as hormonas sexuais não interferissem no sabor da carne e no desenvolvimento do animal, tendo em vista a engorda. Confesso, que este acto cirúrgico desprovido de qualquer anestesia, realizado com uma espécie de pequena adaga mourisca, muito me impressionava, pela crueldade e sofrimento infligido aos animais indefesos. Compreende-se perfeitamente, porque fugíamos a “sete pés”, quando algum malandreco mais velho, nos ameaçava que nos ia capar, por termos portado menos bem.

Passada a prova de sobrevivência, o animal, como omnívoro que era, comia de tudo um pouco, era assim uma espécie de “ecoponto de reciclagem,”pois, ingeria restos de comida para humanos, vegetais, frutas, cereais, farelos etc. Quando Novembro chegava, a sua dieta passava ser quase exclusiva de bolota, rica em hidratos de carbono, o seu peso aumentava a olhos vistos. O Inverno chegava e com ele o frio, tempo próprio para o abate, a tradição assim o exigia, pois os micróbios requerem temperaturas mais elevadas para se desenvolverem.

O dia da Festa se aproximava: - os convidados tinham de ser avisados com antecedência e todos os preparativos tinham de ser organizados. Este dia tinha um significado muito especial, juntava-se o útil ao agradável, era de certo modo o pretexto para reunir a família, falar de assuntos pendentes e até negócios.

A dona da casa tinha trabalhos específicos: limpar a casa, cozer o pão, preparar as louças, as roupas, a salgadeira, arear os tachos etc. Ao homem estavam-lhe reservadas outras tarefas: Preparar a lenha, as alfaias, palha de centeio para chamuscar, ir a Martim Longo comprar sal, café, açúcar e os chamados (adubos), especiarias – colorau, pimenta, pimentão e cominhos e ainda algumas guloseimas para as crianças.

Logo de manhã, começavam a chegar os convidados cheios de frio, eram familiares e amigos; servia-se-lhes o café da manhã, embora os homens geralmente optassem por um cálice de medronho e um bolo ou frutos secos. Havia então, um pequeno grupo que se  dirigia às instalações do animal (pocilgo), o dono  atava a uma pata traseira uma corda e conduzia o animal  ao local do sacrifício, onde a  determinado momento era dada voz de ataque. Todos se lançavam sobre o animal até o imobilizarem por completo, atando-lhe o focinho por prevenção; colocavam-no sobre uma mesa tosca de três pernas, era neste local que o matador espetava a longa faca no pescoço do animal, atingindo deste modo uma artéria de grosso calibre, agora o sangue vermelho vivo (carregado de oxigénio) jorrava em esguicho, sendo recolhido parte dele num tacho de metal amarelo - cobre (arame) que continha vinagre, evitando deste modo a coagulação.


Jazia agora no chão o corpo sem vida, procedia-se de seguida à retirada da camada superficial da pele (epiderme) com ao auxilio de palha a arder e com alguns utensílios próprios, retirava-se a pele do focinho (tromba), as unhas (cascos), passava-se à fase seguinte, lavagem e raspagem até ficar de cor clara.

Novamente em cima da mesa, dois cirurgiões tratavam de abrir o cadáver, dando início uma verdadeira aula de anatomia prática em praça pública, um fazia uma incisão superficial desde a ponta do esterno, percorrendo toda alinha branca até ao ânus, aqui uma circular para libertar o recto, tendo o cuidado de o atar para não fazer borrada, produzia mais duas incisões de cada lado, na pele do abdómen (barriga), onde dois ajudantes de campo introduziam os dedos indicadores e manejavam conforme necessário, agora sim: penetrava com os dedos na cavidade abdominal (pança) procedendo à completa abertura, ficando à vista os intestinos (tripas), puxava o estômago – (bucho) e o esófago (canal) retirando todas as vísceras para um alguidar, depois retirava ainda as banhas (mantas) das paredes laterais do abdómen.

Em simultâneo, o segundo cirurgião fazia a sua incisão (corte), desde o esterno até à boca , depois abria a o esterno a (caixa) com ajuda de dois ajudantes que forçavam as patas dianteiras permitindo assim o livre acesso livre à caixa torácica donde ia retirando os pulmões (bofes), coração - (máquina), fígado (cachola) e ainda o baço que por aqui chamam (passarinha), nome bastante sugestivo, retiravam-se ainda os presuntos, as espáduas (pás), as costeletas (aduelas) o cérebro (mioleira), ficando apenas a coluna vertebral (espinha), no interior da qual estava alojada a medula (tutano), mesmo esta iria ser subdividida e sepultada  na salgadeira juntamente com outras peças, nomeadamente os pezinhos , os presuntos onde seriam cobertos de sal, modo ancestral de conservação dos alimentos Não  existiam ainda, por lá, as arcas frigoríficas, mas  mesmo que existissem,  não tinham fonte de alimentação (energia eléctrica ) para que funcionassem.

Às mulheres estava reservado o trabalho de desmanchar as tripas, ripá-las e lavá-las e prepará-las para os enchidos, fritar a carne e fazer a banha e os deliciosos torresmos Após tamanha azáfama (canseira), chegava finalmente o esperado almoço que reunia todos à mesa comungando da mesma alegria. A ementa era constituída por pratos típicos do acontecimento, como: A (moleja) com cominhos, feita com o sangue do animal, a cachola e os bofes fritos, uma fritada de carne ou mesmo um guisado, tudo isto regado com um bom vinho caseiro de elevado teor alcoólico, capaz de deitar por terra o mais forte dos gigantes, caso não fosse moderado no seu consumo. O convívio prolongava-se pela tarde fora, com conversas interessantes ou não, até chegar a hora da despedida, acompanhada de um ou vários convites para as próximas matanças em casa do irmão, primo, cunhado etc.


Nota: Os termos a negrito representam regionalismos castiços utilizados pelo povo a que pertenço e me identifico.