terça-feira, 4 de junho de 2013

Crónicas dos Balurcos [1]






Escreve

José Rodrigues




O TI AFONSO DA EIRINHA

Normalmente a Eirinha não faz parte da toponímia dos Balurcos. Situa-se entre o Montinho e o Cerro, junto à Estrada Municipal nº1057 constituindo, por assim dizer, a “baixa comercial” comum aos dois núcleos habitacionais, não sendo por isso considerado individualmente, como Monte. É onde hoje existe ainda, o único estabelecimento comercial dos Balurcos, o Café e Mercearia da D. Teolinda, sendo que há 40/50 anos existiam ali, do lado do Cerro, a Taberna do Ti Zé Joaquim (José António, de nome verdadeiro), que também tinha oficina de Ferrador e, do lado do Montinho, a Mercearia do Ti Afonso, (António Afonso).

É do Ti Afonso, sapateiro de profissão e comerciante por opção, que vou falar na presente crónica. Lembro-me dele, desde que me conheço, pelo facto de ser vizinho e compadre dos meus avós. Foi uma pessoa com bastante humor, muito amigo dos clientes que visitavam o seu estabelecimento, muito informado mas com alguma dose de ingenuidade, extremamente bem formado e, sobretudo um homem bom, tal como sua esposa, a Ti Joaquina Pereira. Frequentemente o via a ler jornais e era cliente habitual da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian onde se misturava com a juventude na procura de literatura que lhe interessasse. Ouvi-o vezes sem conta a recitar poemas, nomeadamente “Os bichinhos que há no mundo”, de que retive na memória apenas a 1ª quadra (Os bichinhos que há no mundo / Eu te os vou nomear / O piolho está sesudo / E a pulguinha anda a pular.) ou a “Nau Catrineta”, entre outros.

Foi, também, um homem com preocupações sociais e, no início dos anos 30, em conjunto com o Cabo Galrito, residente no Cerro, fundou a meritória Instituição Mutualista, Lutuosa dos Balurcos, vulgarmente conhecida por Sociedade dos Caixões, cujo objectivo era pagar aos herdeiros dos sócios falecidos um subsídio para custear ou ajudar às despesas do funeral. O dinheiro para esse pagamento resultava da quota fixada, que era paga à Direcção, só quando acontecia o óbito de um associado, ou seja, não havia pagamento regular periódico.  

Sinalética toponímica. Foto JDR

Amigo de dizer piadas e de colocar problemas, lembro-me muitas vezes quando, com outros amigos, íamos à mercearia para fazer algum recado ou simplesmente para o visitar, de o ouvir dizer larachas do tipo: “Fó daí moço…!”, em que o “fó” era a contracção da palavra foge, que ligado ao “daí moço”, resultava na fonética desejada, para nos fazer rir. Uma vez requisitou na Biblioteca o livro, A noite e a Madrugada de Fernando Namora que depois nos mostrava, dizendo: - estão a ver este livro?! Olhem para isto?! E lia, com a pontuação que lhe convinha, o que constava da capa: Fernando, namora a noite e a madrugada!
A mercearia estava sempre limpa e bem arrumada. Sobre o balcão, corrido e bastante puído dos clientes lhe encostarem os braços, uma guilhotina de cortar bacalhau à qual eu sempre achei muita graça, e uma balança de pratos com armação em ferro fundido e pratos de “arame” (latão), que a ti Joaquina Pereira mantinha reluzentes de tão bem areados. Ainda sobre o balcão um boião de vidro com rebuçados que o ti Afonso vendia, a dois um tostão, e que também usava, quando lhe faltavam as moedas de 10 ou 20 centavos (1 ou 2 tostões), para a demasia. Na parte posterior, as tulhas em madeira onde armazenava os produtos da venda avulsa: grão, feijão, arroz, açúcar, griséus, etc. e por cima, na parede, um escaparate onde eram arrumados outros produtos, alguns já embalados, como: palha d´aço, bolachas baunilha, farinha 33, café em grão, línguas-de-gato, latas de conserva, OMO, TIDE, etc. Apesar da já existência destes últimos, no ramo das limpezas, ainda pontificava o sabão azul e branco em grandes barras, que eram cortadas, à medida que o cliente pretendia, por um instrumento feito pelo próprio ti Afonso, composto basicamente por um arame fino, em arco, cujas extremidades eram atadas a um cabo feito de um pedaço de vara de “jambuzo”. No escaparate também havia lugar para material básico de papelaria como: cadernos, sebentas, lápis, borrachas, folhas de papel azul de 25 linhas, etc. No resto do espaço algumas sacas, em pé e abertas, com produtos como: milho, cevada, favas ou mistura para animais. Existia também uma balança decimal, onde se pesavam os produtos de venda em maiores quantidades, como as ditas rações, ou então os produtos que também comprava aos vizinhos, sobretudo as azeitonas “verdes” para “britar” ou “arretalhar”, que negociava com compradores exteriores obtendo, também aí, alguma mais-valia.  

Devido ao negócio era homem de contas, e gostava igualmente de nos testar com problemas que ele inventava ou que teria ouvido ou lido, em qualquer outro lugar. Um dia, achando-me já “maduro” para a resolução de uma questão complicada, na sua perspectiva, colocou-me o problema/fábula do gavião e das 100 pombas, desconhecido para mim até essa data, e que nunca mais esqueci:
“Um gavião passa a voar e vendo um bando de pombas, pousadas, diz-lhes: Bom dia minhas 100 pombas! Respondendo elas: 100 pombas não! Nós pombas que aqui estamos, mais outras tantas como nós, mais metade de nós, ainda mais a quarta parte de nós e contigo Gavião, 100 pombas somamos”.

Posto o problema nestes termos, queria o Ti Afonso saber quantas pombas tinha o Gavião saudado. Para minha sorte, tinha ainda “fresca” a aprendizagem recente das equações de 1º grau e então pedi-lhe o lápis, que sempre trazia atrás da orelha, e num bocado de papel pardo, onde enrolava algumas das mercadorias, ali mesmo atribui o xis ao número de pombas e foi só estabelecer a equação e resolvê-la. Uns minutos depois dei-lhe a solução: 36 pombas. É claro que o Ti Afonso ficou admirado e satisfeito pelo meu desempenho, e se ele ficou contente, imaginem, agora, eu!

Muitas vezes convidava-nos, à noite, para jogarmos “ao rebuçado”. As apostas eram feitas com rebuçados que ele nos vendia e no jogo, designado naquele tempo por “estica” (uma espécie de poker), podiam entrar até 8 jogadores com um baralho de 40 cartas e o objectivo era fazer “pares”, “ternos” ou “quadras” de cartas com o mesmo valor facial, naturalmente de naipes diferentes, podendo, nas 5 cartas distribuídas em cada jogada, obter-se “um par”, “dois pares”, “um trio”, “um trio e um par” ou uma “quadra”. Lembro-me que o mais forte era a “quadra de ases”. No inicio de cada jogada todos apostavam um rebuçado para constituir a “mesa”, depois de concluída distribuição das cartas, (cinco na 1ª rodada e mais duas para substituir igual número rejeitado, na 2ª rodada), os que não tinham “jogo” iam “abaixo” (era expressamente proibido, aos desistentes, mostrar as cartas), os que “iam a jogo” apostavam, à vez, o valor que achavam conveniente, de acordo com a qualidade do jogo que tinha escondido, e quem quisesse ir até ao fim tinha que igualar a maior aposta, sendo que muitos faziam caixa (“bluff”), arriscando apostas elevadas, sem jogo que prestasse, ganhando algumas vezes, aos que desistiam com receio de perder, mesmo tendo as combinações mais fortes. Dos que ficavam até ao fim ganhava o que tivesse o jogo mais “valente” e, naturalmente, arrecadava todos os rebuçados da “mesa”.

Casa de Ti Afonso, hoje desabitada. Foto de JDR

Muitas outras “estórias” ficam por contar, por falta de espaço, como por exemplo as da sua faceta de caçador furtivo, onde era mestre em “armar” “arames” (laços) e “rateiras” com as quais apanhava lebres e coelhos, ou das conversas com o seu vizinho Zé Joaquim, de quem foi sempre muito amigo, ou em temas sobre o bem falar português com o ti Zé Dias, reformado da GNR e também vizinho ou, ainda, sobre os seus dois sonhos, aos quais sempre se referia com a chalaça que o caracterizava: um era viver até aos 100 anos e o outro possuir uma motorizada com três rodas. Nenhum deles, infelizmente, se concretizou. Faleceu em 1985, com 82 anos de idade.

Depois do 25 de Abril de 74, várias vezes o ouvi referir a terceiros, ter sido eu quem lhe tinha ensinado o significada da palavra Democracia. Lembro-me de termos falado sobre o assunto e confesso que hoje, quase 40 anos volvidos, seria muito mais difícil explicar tal significado, tendo em conta a realidade actual do país.

Foi infinitamente pouco, alguma coisa que lhe tenha “ensinado”, tomando por comparação o que aprendi com ele, sobretudo no que diz respeito aos valores e à forma bem-disposta e optimista de encarar a vida.

OBRIGADO e até sempre, Ti Afonso!

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