Escreve
José Rodrigues
OS BAILARICOS PÚBLICOS
1
Durante as férias de Natal, de Verão, mas sobretudo nas
férias de Carnaval havia bailaricos que constituíam sempre uma “festa”. Quando
as realizações eram nos Balurcos a deslocação era fácil, pior era, por carência
de transporte, quando aconteciam longe, mas enfim, a pé de bicicleta ou,
circunstancialmente, nalgum carro alugado, tudo servia, o essencial era ir.
Os bailes eram sempre “abrilhantados” por acordeonistas (a
excepção era, naturalmente, a festa de Alcoutim). Lembro-me de ter conhecido
alguns desde miúdo, mas no final dos anos 60, princípios de 70 “pontificava” o
Joaquim Manel dos Farelos, o melhor nessa época, talvez por ser o único. Os
bailes realizavam-se normalmente em armazéns ou salões com alguma dimensão,
onde se construía um palanque para
instalar uma cadeira onde se sentava o tocador
debitando, a partir dali, a música composta basicamente por marchas, tangos,
valsas e corridinhos. Muitas das vezes o tocador fechava os olhos de tal
maneira, que a malta dizia que ele sabia a música “de cor”, e por isso até se
dava ao luxo de adormecer, durante a função. Junto às paredes, em toda a volta
da sala, as cadeiras onde normalmente
se sentavam as meninas mais as mães;
os rapazes deambulavam por ali e só se aproximavam quando o tocador dava início
a mais uma “moda”. Quando isso acontecia, disfarçadamente lá dávamos um sinal
para o par pretendido, com a dissimulação possível não fosse acontecer o
“cabaço”, que ninguém gostava que fosse tornado público. O baile ia-se
desenrolando com algumas pisadelas pelo meio, resultantes de algum encontrão de
outro par, ou do desacerto da própria dupla, resultante do resvalar errático dos
dedos do tocador pelas teclas do “fole”, falhando assim a sequência das notas,
estabelecida pelo compositor, da melodia que se propôs replicar. Apesar de
tudo, normalmente as coisas iam caminhando e a gente gostava.
Nos intervalos
tomava-se qualquer coisa na tasca improvisada, que dava apoio aos organizadores,
onde se bebiam cervejas, laranjadas e gasosas “refrescadas” em bidões de água
com umas sacas de serapilheira humedecida por cima, que eram os “frigoríficos”
possíveis, num tempo em que a energia eléctrica ainda estava para chegar.
A meio da noite procedia-se à rifa do bolo que rendia mais
umas coroas. O “leiloeiro” subia ao palanque do tocador, e pedia silêncio.
Agarrava na bandeja e começava: - Ora
temos aqui um belo bolo, oferecido à organização do “balho”, que vamos agora rifar.
Pra começar está em “5 mil réis”, quem dá mais? Isoladamente, ou em grupo,
iam sendo feitas ofertas, que o apregoador ia divulgando, à sua maneira,
com pompa e circunstância: - sete mil e
quinhentos, quem dá mais?… Dez mil réis… Doze e quinhentos, quinze, dezassete e
quinhentos… Quem dá mais? Dezassete e quinhentos,… dou-lhe uma … dou-lhe duas…
Vinte escudos, ali para aquele canto… vinte escudos, quem dá mais? Os que
se digladiavam, lá iam cobrindo os lanços, mas a maioria estava desejando que
acabasse a “rifa” para que a música pudesse ser retomada prosseguindo assim a “balhação”. Quando a coisa já estava
mais do que espremida o leiloeiro lá se decidia: … dou-lhe uma… dou-lhe duas… ninguém dá mais? … dou-lhe três…! E mandava
entregar o produto rifado ao titular da maior oferta. Havia vezes em que se
rifavam também garrafas de bebida “fina” (normalmente vinho do Porto).
E o baile lá continuava até que as mães das meninas impusessem
o recolher obrigatório. Normalmente pelas 4/5 da manhã terminava, numa altura
em que o cansaço já se apoderava de nós, apesar de novos, ou talvez por isso! Regressava-se
a casa com a música “impressa” no cérebro e adormecíamos ao som das valsas e
dos tangos.
OS BAILARICOS PRIVADOS
Por haver poucos bailes públicos, nós inventámos os privados! Primeiro com um gravador de fita e mais tarde
um gira-discos, fraquinho diga-se, mas que cumpriu sempre a função sem um
mínimo de falha, a não ser, como às vezes acontecia, que falhassem as pilhas.
O velho gira-discos. Foto JDR |
Era a juventude dos Balurcos, já na altura não muito
abundante, mas que dilatava em tempo de férias. Os que não estudavam já tinham
“descido” ao litoral para trabalhar em hotéis ou rumado à Grande Lisboa, onde
tinham familiares ou então assentado praça, como voluntários, na Marinha. Nas
férias por lá nos encontrávamos e muitas vezes organizávamos os nossos
petiscos, e os já referidos bailaricos. A iluminação provinha do candeeiro a
petróleo que, para o caso, até nem era o mais importante, a não ser para mudar
o disco! O essencial mesmo era que não se “acabassem” as pilhas, que faziam
“girar” o toca-discos. Quando as ditas falhavam e não havia suplentes,
chegávamos a fervê-las num tacho com água, por forma a durarem mais uma hora,
meia hora, ou dez minutos que fossem. E resultava!
As músicas eram as da época e iam desde o consagrado Roberto
Carlos, que até já queria “buzinar o
calhambeque”, passando pelo promissor Júlio Iglésias, com o “canto a Galicia”, o Francisco José, com
o sucesso da “guitarra minha toca
baixinho”, os “vinte anos” dos
Green Windows, “goodbye my love goodbye”
e “we shall dance” de Demis Roussos, Neil
Diamond com “song, song blue”, ou de Daniel
Gerard com “butherfly”, ou ainda do romântico
Adamô, que as meninas adoravam, com o
seu tema “tombe la nége”. E havia
ainda tantos outros como: Beatles, Credence Clear Water Revival, Janis Joplin, Nélson
Ned, etc. É no entanto impossível esquecer, a cereja no topo do bolo, que foi “Je t'aime,...moi non plus” de Jane
Birkin e Serge Gainsbourg, de longe o maior sucesso nesses encontros dançantes,
vá-se lá saber porquê?! Suspeito eu que, pelo facto de o disco ter sido
proibido de “passar” nas estações de rádio existentes nessa altura!
Tudo isto se passou nos últimos anos da ditadura em que
inventávamos a nossa própria liberdade, para mais tarde acabarmos “presos”,
conjugalmente falando, já em plena Democracia. Foram tempos, nem melhores nem
piores, mas simplesmente diferentes que, naturalmente, recordamos com saudade.