sexta-feira, 21 de junho de 2013

Migrantes e emigrantes




Escreve
António Afonso

Todos aqueles que conhecem o Concelho de Alcoutim sabem que este é composto por terrenos muito acidentados, salvo excepção de uma língua de terra, que se estende desde os arredores de Martim Longo até às cercanias do Pereiro, a que designam de “chada ou também achada”, onde o terreno é mais ou menos plano.
São montes, cerros e mais cerros a perder de vista, creio que todos eles paridos pela Mãe Natureza num dia de tempestade, fazendo lembrar um mar encapelado. Todos têm a sua própria designação: o cerro dos mouros, do marco, das perdizes, da raposa, dos barões e ainda um de cujo nome gosto particularmente, o do maniverso, talvez por ser pouco comum. Ora deste tipo de orografia de montanha coberta de vegetação rasteira, composta de estevas e rosmaninhos sobressai aqui e ali uma moita de carrascos. Nos vales profundos correm cursos de água temporários, formando a rede hidrográfica. Em parte, todo este meio ambiente moldou os seus habitantes. As influências do litoral eram bastante escassas devido à barreira natural e aos péssimos meios de comunicação por via terrestre quase inexistentes. As populações receberam também influências do seu vizinho Alentejo, essas tão presentes no seu dia-a-dia nos usos e costumes, como no vestir, andar, cantar, modo de falar e ainda nos hábitos alimentares, agricultura, pecuária, arquitectura, etc.
Compreendo, perfeitamente, que a realidade na vila seria um pouco diferente, pela sua situação geográfica, situada junto a essa estrada líquida, que é o Guadiana e por ser o centro administrativo, com repartições públicas, Finanças, Registo Civil, Escolas, Farmácia, Celeiro, Correios, Serviços Camarários e Forças policiais de Fronteira. Aqui se desenvolveu, também, uma panóplia de serviços necessários à vida quotidiana. Todo esse conjunto proporcionava empregos a muita gente ali nascida e outros vindos de fora, como foi o caso do nosso amigo José Varzeano, vindo da lezíria, que ali enraizou e se tornou uma mais-valia para Alcoutim; oxalá que ainda continue por muitos e bons anos.
Eu estou convencido que o alcoutenejo é ser um híbrido, pois a cepa pode ser Algarvia, mas a enxertia veio do Alentejo, pela força anímica do convívio ancestral, das feiras, das festas, dos casamentos, dos trabalhos campestres enfim, sempre existiu uma proximidade muito grande entre ambas as comunidades; até por razões históricas, convém recordar que este concelho fora parte integrante da província do Alentejo, até à Revolução Liberal e o Algarve ostentava orgulhosamente o título de Reino, concedido pela Casa Real, passando posteriormente à categoria de província e absorvendo Alcoutim para o seu território. Penso que, uma coisa são as decisões políticas, outra, bem diferente é a realidade observada no local; vejam quanto tempo já passou, mas os mais idosos ainda dizem: “ amanhã eu vou para o Algarve “.
Já em Lisboa tive a oportunidade de me cruzar com muitos conterrâneos, que pelo tom de voz eu quase identificava, mas na dúvida, ia puxando o fio à meada, através da conversa, concluindo que eram alcoutenejos de verdade; curiosamente, alguns diziam-se alentejanos e lá tinha eu que corrigir a sua naturalidade.
A terra aqui é pobre, áspera, muito árida e os habitantes só tinham algum sucesso nas culturas de sequeiro, com a ajuda de muitos adubos; essa cultura intensiva deixou os terrenos gastos, exauridos e mesmo nesses tempos nunca produziam o suficiente para alimentar cabalmente os seus filhos. Embora ocasionalmente, estes tivessem de procurar parte do seu sustento noutras paragens, ouvi “estórias” da boca do meu avô, do meu pai e dos meus tios, todos eles atores neste filme que as pessoas se deslocavam para norte à procura de trabalho. Esse cruel relato inquietou-me bastante e jamais desapareceu da minha memória, por julgar injusto tanto sofrimento.
Até aos anos cinquenta as pessoas dirigiam-se para o Alentejo para as mondas e ceifas. Alguns já levavam destino certo; obtido por meio de angariadores, dirigiam-se para as grandes herdades de Beja. Recordo o nome de algumas: o Belo, o Delgado, a Salvada, a Chaminé, formando ranchos migratórios, tal como os “ratinhos,” e os “gaibéus”; porém, outros deslocavam-se com os seus poucos haveres à praça de Beja à procura de trabalho, local que eu chamo “mercado de escravos”. Nos alvores da madrugada, perfilavam na praça como militares; entretanto começavam a chegar, os capatazes, os feitores que escolhiam a sua mercadoria entre os mais fortes e depois, vinham os da segunda e terceira escolha. Por fim restavam os sem trabalho, entregues à misericórdia divina, era assim aquela saga! Dito desta forma nua e crua, creio que os mais jovens irão dizer que se trata de uma inverdade. Pois meus amigos, perguntem aos vossos avós e bisavós, testemunhas vivas desse triste passado e certamente serão esclarecidos. 
Em ambos os casos, eram levados para as herdades onde eram instalados em péssimas condições de habitabilidade, mal dormidos, mal comidos, mal pagos, até a água era escassa, esta distribuída por um aguadeiro. Ao nascer do sol começavam a trabalhar nos trigais da planície, terminando quando este desaparecia no horizonte. Aqui o sol é castigador, atingindo facilmente os quarenta graus no Verão e temperaturas negativas durante o Inverno impiedoso ou de chuvas abundantes que os encharcava até à medula. Com frequência ouviam-se os seus cantares, era uma melodia indolente e arrastada, servindo de bálsamo analgésico para os seus sofrimentos do corpo e da alma, à semelhança dos escravos no seu murmúrio.
O seu salário era muito baixo, à época. Os trabalhadores alentejanos já mais organizados exigiam uma jorna justa pelo seu justo trabalho e acusavam frequentemente os serrenhos de pouco leais e nada solidários, chegando a haver alguns confrontos entre eles. Também estes, eram mal tratados, por vezes presos e escorraçados, pela autoridade vigente; alguns deles partiram para a cintura industrial de Lisboa, outros para longe, para muito longe, sabem para aonde? Para as plantações de cana, no Havai, onde formaram uma comunidade, que chegou aos nossos dias, eram naturais de Serpa, Pias, Vale do Vargo, Baleizão etc.
A partir dos anos sessenta, os alcoutenejos começaram a ir para os arredores de Lisboa, uns a trabalhar no campo, outros nas obras da construção civil. Cheguei a visitar alguns deles em Trajouce, Cascais, que habitavam uma pequena casa, onde preparavam as refeições e dormiam dez pessoas; outros viviam no Barracão situado em Alcântara que foi demolido, quando da construção da ponte. O Barracão era generoso, tinha coração de mãe, nele sempre cabia mais um filho da terra.
Depois veio o ciclo da emigração. Após a segunda guerra, a Europa ficou muito devastada e destruída; passados alguns anos, renascia das cinzas tal como a Fénix, precisava de mão-de-obra de qualquer tipo, pois é precisamente para aí, que se deslocam os alcoutenejos a ganhar a vida, assim como outros compatriotas; muitos vão a salto, outros, poucos, vão legalmente. Nesses países, nomeadamente França e Alemanha prosperaram e ganharam raízes, tendo alguns regressado definitivamente à terra que os viu nascer; outros apenas aparecem de visita e voltam de novo para o país de acolhimento onde a família se alargou.
Desta forma, com toda esta sangria desatada de migrações e emigrações, com o desaparecimento dos mais idosos, Alcoutim foi perdendo drasticamente o seu capital humano, conforme rezam as estatísticas, o despovoamento é notório e acelerado.