Escreve
António Afonso
Todos aqueles que conhecem o Concelho de Alcoutim sabem que este é composto
por terrenos muito acidentados, salvo excepção de uma língua de terra, que se
estende desde os arredores de Martim Longo até às cercanias do Pereiro, a que
designam de “chada ou também achada”, onde o terreno é mais ou menos plano.
Compreendo, perfeitamente, que a realidade na vila seria um pouco
diferente, pela sua situação geográfica, situada junto a essa estrada líquida,
que é o Guadiana e por ser o centro administrativo, com repartições públicas,
Finanças, Registo Civil, Escolas, Farmácia, Celeiro, Correios, Serviços
Camarários e Forças policiais de Fronteira. Aqui se desenvolveu, também, uma
panóplia de serviços necessários à vida quotidiana. Todo esse conjunto
proporcionava empregos a muita gente ali nascida e outros vindos de fora, como
foi o caso do nosso amigo José Varzeano, vindo da lezíria, que ali enraizou e
se tornou uma mais-valia para Alcoutim; oxalá que ainda continue por muitos e
bons anos.
Eu estou convencido que o alcoutenejo é ser um híbrido, pois a cepa pode
ser Algarvia, mas a enxertia veio do Alentejo, pela força anímica do convívio
ancestral, das feiras, das festas, dos casamentos, dos trabalhos campestres
enfim, sempre existiu uma proximidade muito grande entre ambas as comunidades;
até por razões históricas, convém recordar que este concelho fora parte
integrante da província do Alentejo, até à Revolução Liberal e o Algarve
ostentava orgulhosamente o título de Reino, concedido pela Casa Real, passando
posteriormente à categoria de província e absorvendo Alcoutim para o seu
território. Penso que, uma coisa são as decisões políticas, outra, bem
diferente é a realidade observada no local; vejam quanto tempo já passou, mas
os mais idosos ainda dizem: “ amanhã eu vou para o Algarve “.
Já em Lisboa tive a oportunidade de me cruzar com muitos conterrâneos, que
pelo tom de voz eu quase identificava, mas na dúvida, ia puxando o fio à meada,
através da conversa, concluindo que eram alcoutenejos de verdade; curiosamente,
alguns diziam-se alentejanos e lá tinha eu que corrigir a sua naturalidade.
A terra aqui é pobre, áspera, muito árida e os habitantes só tinham algum
sucesso nas culturas de sequeiro, com a ajuda de muitos adubos; essa cultura
intensiva deixou os terrenos gastos, exauridos e mesmo nesses tempos nunca
produziam o suficiente para alimentar cabalmente os seus filhos. Embora
ocasionalmente, estes tivessem de procurar parte do seu sustento noutras
paragens, ouvi “estórias” da boca do meu avô, do meu pai e dos meus tios, todos
eles atores neste filme que as pessoas se deslocavam para norte à procura de
trabalho. Esse cruel relato inquietou-me bastante e jamais desapareceu da minha
memória, por julgar injusto tanto sofrimento.
Até aos anos cinquenta as pessoas dirigiam-se para o Alentejo para as
mondas e ceifas. Alguns já levavam destino certo; obtido por meio de
angariadores, dirigiam-se para as grandes herdades de Beja. Recordo o nome de
algumas: o Belo, o Delgado, a Salvada, a Chaminé, formando ranchos migratórios,
tal como os “ratinhos,” e os “gaibéus”; porém, outros deslocavam-se com os seus
poucos haveres à praça de Beja à procura de trabalho, local que eu chamo “mercado
de escravos”. Nos alvores da madrugada, perfilavam na praça como militares;
entretanto começavam a chegar, os capatazes, os feitores que escolhiam a sua
mercadoria entre os mais fortes e depois, vinham os da segunda e terceira
escolha. Por fim restavam os sem trabalho, entregues à misericórdia divina, era
assim aquela saga! Dito desta forma nua e crua, creio que os mais jovens irão
dizer que se trata de uma inverdade. Pois meus amigos, perguntem aos vossos
avós e bisavós, testemunhas vivas desse triste passado e certamente serão
esclarecidos.
Em ambos os casos, eram levados para as herdades onde eram instalados em
péssimas condições de habitabilidade, mal dormidos, mal comidos, mal pagos, até
a água era escassa, esta distribuída por um aguadeiro. Ao nascer do sol
começavam a trabalhar nos trigais da planície, terminando quando este
desaparecia no horizonte. Aqui o sol é castigador, atingindo facilmente os
quarenta graus no Verão e temperaturas negativas durante o Inverno impiedoso ou
de chuvas abundantes que os encharcava até à medula. Com frequência ouviam-se
os seus cantares, era uma melodia indolente e arrastada, servindo de bálsamo
analgésico para os seus sofrimentos do corpo e da alma, à semelhança dos
escravos no seu murmúrio.
O seu salário era muito baixo, à época. Os trabalhadores alentejanos já
mais organizados exigiam uma jorna justa pelo seu justo trabalho e acusavam
frequentemente os serrenhos de pouco leais e nada solidários, chegando a haver
alguns confrontos entre eles. Também estes, eram mal tratados, por vezes presos
e escorraçados, pela autoridade vigente; alguns deles partiram para a cintura
industrial de Lisboa, outros para longe, para muito longe, sabem para aonde?
Para as plantações de cana, no Havai, onde formaram uma comunidade, que chegou
aos nossos dias, eram naturais de Serpa, Pias, Vale do Vargo, Baleizão etc.
A partir dos anos sessenta, os alcoutenejos começaram a ir para os
arredores de Lisboa, uns a trabalhar no campo, outros nas obras da construção
civil. Cheguei a visitar alguns deles em Trajouce, Cascais, que habitavam uma
pequena casa, onde preparavam as refeições e dormiam dez pessoas; outros viviam
no Barracão situado em Alcântara que foi demolido, quando da construção da
ponte. O Barracão era generoso, tinha coração de mãe, nele sempre cabia mais um
filho da terra.
Depois veio o ciclo da emigração. Após a segunda guerra, a Europa ficou
muito devastada e destruída; passados alguns anos, renascia das cinzas tal como
a Fénix, precisava de mão-de-obra de qualquer tipo, pois é precisamente para
aí, que se deslocam os alcoutenejos a ganhar a vida, assim como outros
compatriotas; muitos vão a salto, outros, poucos, vão legalmente. Nesses
países, nomeadamente França e Alemanha prosperaram e ganharam raízes, tendo
alguns regressado definitivamente à terra que os viu nascer; outros apenas
aparecem de visita e voltam de novo para o país de acolhimento onde a família
se alargou.
Desta forma, com toda esta sangria desatada de migrações e emigrações, com
o desaparecimento dos mais idosos, Alcoutim foi perdendo drasticamente o seu
capital humano, conforme rezam as estatísticas, o despovoamento é notório e
acelerado.