sábado, 24 de outubro de 2009

Igreja da Misericórdia

Classificamo-la de igreja para respeitar a origem pois presentemente não passa de uma simples capela.

Quando a conhecemos já lhe tinha sido amputada a sacristia, que com a casa de despacho e a residência do andador formaram o hospital.

Situa-se na Rua D. Fernando próximo da Praça da República.

[A Igreja da Misericórdia em 1967]

A fundação do templo parece ser anterior a 1513 visto no interior existir uma pedra sepulcral com a seguinte inscrição:- SEPULTURA DE MARTIM VILÃO E DE SUA MULHER (E) HERDEIROS - ERA DE 1513 - O PRIMEIRO SEPULTADO NESTA CASA. PADRE NOSSO - AVÉ MARIA. Contudo, na visitação de 29 de Dezembro de 1565, da Ordem de Santiago à Igreja de São Salvador, matriz da vila, diz-se:- Diante deste altar na mesma nave está huma capella d´ abobada (...) madeirada de duas ágoas (...), a qual capella foi a capella moor desta igreia e agora servem-se os irmãos da Misericórdia della por não terem casa feita nesta vila. (1)

Fica aqui patente uma contradição, parecendo que a “casa” já existia antes de 1513.

Na fachada lateral que dá para a Rua da Misericórdia, uma porta rectangular, agora englobada na Conservatória de Registos e Notariado, torna-se curiosa devido ao lintel de pedra que tem a seguinte inscrição: ESTA OBRA MANDOU FAZER AFONSO MADEIRA CORVO FAMILIAR DO SANTO OFÍCIO 1628, em letra usada nas inscrições portuguesas desde meados do século XV.

O templo é muito simples e pobre. Não se encontram nele quaisquer motivos de uma construção manuelina. Telhado de duas águas e de telha de canudo. Teve planta rectangular sendo o comprimento superior ao dobro da largura.

Fachada de empena de bico sem motivos de interesse. No topo, uma cruz simples de ferro forjado, certamente obra de artesão local. Nas extremidades e alegrando-a, trabalhos de argamassa de forma piramidal.

Não existe torre sineira mas possui pequeno sino sobre a fachada lateral esquerda. Tem a seguinte inscrição:- // SANTVS // SVPRE //VEN // ESPRITVS // I. T. F.

A porta principal é rectangular e de ombreiras carcomidas pelo decorrer dos séculos. Na verga e ao centro, pequena inscrição circular. Por cima, abre-se uma janela rectangular servindo o comprimento de ombreira. Areja e ilumina o templo.

Além da pedra sepulcral já referida, existem mais duas, a do sargento-mor da vila, José de Brito Magro que foi durante muitos anos provedor da Santa Casa e a de sua filha, D. Ana Jacinta Roza, falecida em 1808.

[A Igreja da Misericórdia num desenho de J.V., 1967]

O epitáfio da primeira é do seguinte teor: "Aqui jaz / o cap am mor J e de B ro / Magro da V a de Alc tim / Quase Perpetuo Pr vor / desta Caza dur te / sua vida e q mais / se exmerou em prom ver / as fellecid es della / faleceo no dia 12 / de Maio de 1824 / P e N o A e M a"

Em 1768 tinham sido decorados o púlpito e a tribuna e mais tarde os santos são encarnados de novo. A decoração é de tipo marmóreo.

Em 1789 sabe-se que existiam vários paramentos, um cálix, um missal, uma estante para o mesmo, turíbulo de prata, quatro castiçais de pau preto, um caixão de sacristia, móveis da sala de despacho e as imagens de Santo Christo, Nº Senhor, São João Evangelista e de “Magdalena”. Destas, só restavam três, a de Cristo, Nº Senhor e de São João (imagem de roca setecentista). Um crucifixo de trono e outro que também serve a tumba, são da mesma época e de madeira grosseiramente pintada.

O exemplar de ECCE HOMO é considerado pelo Dr. Francisco Lameira de boa qualidade e em bom estado de conservação. (2)

O altar era separado do resto da igreja por um arco triunfal onde estavam pintadas as armas de D. João VI e a era de 1819.

A quando da cheia do Guadiana de 1876, ficou muito danificada, tendo sido fechada ao culto. As imagens foram recolhidas na igreja matriz.

Em 24 de Dezembro desse ano reúne-se a Irmandade na sacristia da Real Capela de Nossa Senhora da Conceição. Aberta a sessão, o provedor, Justo António Torres faz saber que, visto os parcos fundos da Santa Casa para os gastos que tem de fazer na mesma, em virtude dos distúrbios causados pela cheia nos dias 6, 7 e 8, achava muito justo que se dirigissem a todas as Santas Casas da Misericórdia do Reino, solicitando uma esmola a fim de minorar os males que a mesma sofreu; o qual foi aprovado e resolveu-se enviar circular a todas as Misericórdias.

Em 16 de Abril de 1877, a Irmandade volta a reunir no mesmo local e por convocação do mesmo provedor que lhes fez saber, achando-se em S. Domingos o visconde do mesmo título, (3) se deveria recorrer à sua filantropia pedindo-lhe, por meio de uma comissão, esmola para os fins da pronta reedificação da Santa Casa, o que por todos foi aprovado.

Algumas congéneres enviaram as suas esmolas, sendo a de Moncarapacho a única do Algarve que o fez.

Por acórdão de 4 de Abril de 1878, a Irmandade negou-se a contribuir para a quotização efectuada dois anos mais tarde a favor da Igreja Matriz, também danificada pela inundação, alegando ter ela mesma de contrair um empréstimo para reparar o indispensável na sua igreja que está ainda sem soalho e outros reparos urgentes a fazer para ser aberta ao culto.

A reabertura verificou-se em 18 de Janeiro de 1880, tendo isso ficado decidido em reunião da Irmandade realizada a 28 de Novembro do ano anterior. Ali ficou determinado como tudo se processaria e assim foi cumprido.

A missa foi acompanhada por música vocal e instrumental, havendo Te Deum. Colaboraram na festividade o Rev. Prior e Ajudador da vila, priores de Giões e Pereiro e Cura de Sanlúcar.

[A Igreja da Misericórdia. Foto J.V., 2009]

Em Março de 1885 é convocada a mesa para saber se havia fundos para pintar a capela da igreja. Parece que efectivamente a obra foi realizada, como se depreende da seguinte inscrição:- ESTA RECTIFICAÇÃO DE PINTURA MANDOU FAZER O PROVEDOR MANOEL A. TORRES E A MESA QUE SERVIU EM 1885. A inscrição concluía com E FEITA POR JOÃO S. LEIRIA.

Toda a parte interior do templo foi destruída em 1973/74 com as obras do Centro de Saúde que ocuparam espaço importante da igreja, transformando a sua planta que era rectangular em praticamente quadrada.

Todo o altar desapareceu, rolando o brasão de armas de D. Afonso VI num monte de entulho e que acabou por ser recolhido por uma senhora cujos familiares eram oriundos da vila.

As pedras sepulcrais foram removidas para outro local e as sepulturas profanadas tendo uns brincos vermelhos de D. Ana Jacinta rendido vinte escudos ao seu achador!

O chão estava repleto de sepulturas e assisti ao levantamento de uma delas que estava colocada mesmo junto à parede lateral e um pouco acima da porta. Além do mais, levantou-se a cabeça, os pés e as mãos, em barro daquilo que suponho ser uma imagem religiosa.

Antes do camartelo entrar em acção, o alcoutinense Luís Cunha pretende evitá-lo mas o seu alerta lançado num semanário (4) não resultou.

Em 7 de Julho de 1918 é benzida com toda a solenidade a imagem do Senhor dos Aflitos, tendo a missa desse mesmo dia sido dita por alma dos nossos soldados mortos heroicamente no campo da batalha (Guerra Mundial de 1914/18), pedindo ao mesmo tempo à Rainha Santa Isabel que implore ao Altíssimo o termo do terrível flagelo da conflagração europeia.

Enquanto a matriz esteve em ruína, foi este templo que a substituiu.

Já há muito que só serve de casa mortuária.



NOTAS

(1) - “Visitações” da Ordem de Santiago no Sotavento Algarvio, Hugo Cavaco, 1987.

(2)-A Escultura de Madeira no Concelho de Alcoutim do séc. XVI ao séc. XIX.

(3)-Trata-se do 1º Visconde de Mason de S. Domingos, o súbdito britânico, James Mason, concessionário da Mina de S. Domingos. Foi elevado a este título por Decreto de D. Luís de 7 de Dezembro de 1868.

(4)–“Irá perder-se a vetusta Igreja da Misericórdia de Alcoutim?” in Jornal do Algarve de 22 de Setembro de 1973.

N.I.-A maioria das referências feitas teve por base os livros de actas, despesas, inventários e outros da Santa Casa. Na altura não pensava publicar algo sobre o assunto; movia-nos só o gosto de conhecer e daí não termos feito as competentes referências nos nossos apontamentos.