(PUBLICADO NO JORNAL ESCRITO, Nº 61, DE MARÇO DE 2004, P.IV, ENCARTE DE "O ALGARVE" Nº 4785)
A vila de Alcoutim não possui qualquer talho fixo, ainda que tenha há muito mercado municipal, onde quase diariamente funciona a venda de peixe fresco e de espaço a espaço, frutas e hortaliças.
Há trinta anos matava-se em qualquer quintal, de vez em quando uma cabeça de gado, normalmente ovino, que se adquiria nos chamados talhos da vila.
Hoje a vila é abastecida por um talho móvel que aparece aos sábados de manhã e onde as pessoas formam fila.
Mas não é sobre o actual abastecimento de carnes verdes à população que queremos escrever, mas sim sobre o que se passava na vila na segunda metade do século XIX.
Em 1836 cada pessoa que matasse na vila, pagaria por cabeça, vinte réis, satisfazendo assim o imposto Real de Água.
Achando-se o açougue em estado absoluto de ruína e carecendo de ser reparado, mas não havendo fundos para o efeito, acordou a Câmara em estabelecer um imposto, aplicado exclusivamente para a conservação e reparos do mesmo açougue, mandando que se observe o seguinte: - “Todo o indivíduo que vender carne ao público sem ter antes manifestado e pago 40 réis por cabeça abatida, aplicados para reparação e conservação do açougue, terá de multa quinhentos réis.”
Esta postura compreende não só o gado lanígero e de cabelo, assim como o suíno e começará a vigorar no 1º de Novembro próximo futuro, em diante. (1)
Em 1844 a Câmara Municipal decide pôr à arrematação o Corte Exclusivo de Carnes Verdes no Açougue da Vila, com as seguintes condições:
1º-Começa em 1 de Junho e finda em 30 de Junho do ano seguinte;
2º-Deve de haver dois cortes por semana, ao Sábado e à 3ª feira, desde o Sábado de Aleluia até ao dia 4 de Outubro e um só corte no resto do ano, alterando-se o corte do dia de Entrudo para a 2ª feira-gorda.
3º-Dar corte de chibato aos sábados, carneiro às 3ªs e quando houver um só corte ser sempre de chibato e matar, além disso, cabra nos meses de Junho até Setembro, inclusive.
4º-Vender o chibato e carneiro a 35 réis nos meses de Fevereiro e seguintes até Julho, inclusive, e de igual montante nos meses de Outubro e Novembro, enquanto em Agosto e Setembro seria a 30 réis e a 40 em Dezembro e Janeiro. No que diz respeito à cabra, em Junho e Julho seria a 25 réis e nos outros dois meses, Agosto e Setembro, passaria para 20 réis.
5º-Finalmente, as cabeças a abater não deverão ter idade inferior a dois anos e deverão ser capados, o chibato sempre, o carneiro nos meses de Julho, Agosto e Setembro.
O corte de carnes verdes, sob estas cláusulas, foi posto a concurso sendo arrematado por Manuel Madeira, do Monte de Afonso Vicente. (2)
No preço referido não consta a quantidade a que diz respeito, não estando ainda em vigor o sistema decimal. Seria o arrátel que em Alcoutim equivalia a 448,75 g.
Eram estas as condições que a Edilidade procurava impor para defesa do povo (estávamos no liberalismo) tanto a nível de número de cortes, do preço, que oscilava conforme a época, como da maturidade da cabeça a abater.
Igualmente, o aspecto religioso é tomado em consideração.
As arrematações foram-se sucedendo dentro destes parâmetros, já que só em 1868 voltámos a extrair ficha do assunto, atendendo a que existem algumas mudanças consideráveis.
A principal começa logo por só se ter apresentado um interessado ao corte exclusivo de carne, na vila. Trata-se de Custódio Domingues, do Balurco de Cima com quem a Câmara convencionou as seguintes condições:
1º-Que ele, Custódio Domingues, fica obrigado a fornecer carne de chibato e de carneiro aos habitantes desta vila desde hoje (16.05.1868) até 1 de Novembro do corrente ano;
2º-Que a carne de carneiro que só podia matar até ao fim de Junho, será vendida a cento e vinte réis o quilograma (já tinha entrado em vigor o sistema decimal) e a de chibato a 140 rs., igualmente ao quilo;
3º-Que haverá dois cortes por semana, um nas 3ªs feiras e outro nos sábados;
4º-Finalmente que fica proibido a qualquer outra pessoa o matar e vender carne ao povo “dentro dos muros da villa”. (3)
As condições propostas e devido aos condicionalismos, proporcionam uma maior liberdade de movimentos.
Quinze anos depois, em 1883, aparece-nos um auto de Contracto de Fornecimento de Carnes Verdes feito com João Francisco Pimenta desta vila por tempo de um ano a começar no 1º de Maio e findando em 30 de Abril. Não encontrámos expressas mais clausulas no contracto.
Décadas depois, ainda conhecemos um familiar de João Francisco Pimenta em tarefas da mesma natureza, mas sem o espartilho imposto nas arrematações.
Atendendo a que o açougue, palavra de origem árabe (4) é o lugar destinado ao abate de rezes e onde pode ter lugar o corte e venda de carnes a retalho, ajusta-se que digamos aquilo que encontrámos nas nossas leituras, ainda que seja reduzido.
Sabemos que em 1860 o açougue da vila situava-se na Rua da Misericórdia, junto ao local onde Manuel José da Trindade e Lima estava edificando um prédio para habitação. (5) Convindo-lhe esse espaço para incorporar na casa, apresenta à Câmara Municipal um requerimento solicitando permissão para a sua inclusão na construção que estava realizando, obrigando-se a construir outro açougue com as dimensões do actual, no sítio que a Câmara julgar por conveniente.(6)
[Casa mandada contruir por Manuel José da Trindade e Lima, na Rua da Misericórdia e ainda existente. Foto JV, 1972]
A Câmara aceita a proposta e deu um prazo de três meses para a sua construção.
O Presidente da Câmara, José Joaquim Madeira, informa a mesma que não tendo o cidadão Manuel José da Trindade e Lima, cuidado ainda de aprontar a casa que destina para açougue, era conveniente lembrar-lhe a necessidade de fazer a referida obra dentro do prazo de três meses que se lhe havia marcado no princípio de Março, pelo que foi aprovado fazer-se a competente intimação, em termos legais para se for necessário poder ter lugar ulteriores procedimentos. (7)
Não encontrámos mais qualquer referência a esta construção. Dezoito anos depois temos a informação dada à Câmara, pelo Administrador do Concelho, que havia feito mudar de um local imundo, onde se achava, a casa do açougue, passando este serviço para outra dentro do castelo, no qual se dão as precisas condições higiénicas. A Câmara reunida, louvou esta medida e autorizou a remoção das estrumeiras. (8)
Neste mesmo ano, em data que não podemos precisar, é dito que as casas do castelo pertencentes ao Ministério da Guerra e que já foram aquartelamento estão de tal forma deterioradas que não reúnem nenhuma das condições indispensáveis para serem hoje ocupada pela força militar.
Dez anos depois (9) o Administrador do Concelho informa que foi arrendado o castelo desta vila com exclusão das casas onde se acham depositados os utensílios pertencentes às obras públicas.
Em 1892, o terreno e figueiras do castelo, bem como todas as casas que se achem dentro deste, à excepção da anteriormente referida, estavam arrendadas a António Maria Xavier.(11)
Estas últimas informações fazem pensar que nesta altura já o açougue não funcionava no castelo.
Aqui ficam alguns factos passados no decorrer dos tempos que nos podem levar à reflexão.
NOTAS
(1)- Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 20 de Outubro de 1841
(2)- Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 25 de Maio de 1844
(3)- Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 16 de Maio de 1868
(4)- Do ár. As-sõq, “mercado, feira”- Vocabulário Português de Origem Árabe - José Pedro Machado - Editorial Notícias - 1991
(5)- Trata-se do prédio onde está hoje instalado o Bar "Vila Velha".
(6)- Acta da Sessão Câmara Municipal do Alcoutim de 3 de Agosto de 1860
(7)- Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 10 de Abril de 1870
(8)- Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 5 de Setembro de 1878
(9)- Ofício nº 140, de 2 de Julho de 1888, do Administrador do Concelho ao Director de Obras Públicas de Faro.
(10)- Ofício nº 169 de 29 de Outubro de 1892, do Administrador do Concelho ao Chefe da Comissão de Engenharia de Tavira.